Título: Tudo como dantes no loteamento do governo
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 28/03/2007, Opinião, p. A12

O governo de coalizão anunciado pelo presidente Luiz Inácio da Silva após a espetacular vitória de outubro, aquela que iria seguir todos os princípios republicanos e seria feita em torno de um programa com o qual todos os partidos aliados se comprometessem, entra agora na sua segunda fase. Ao todo, oito partidos compõem a base de apoio parlamentar do governo e sete estão ou serão contemplados com cargos de primeiro escalão, que teoricamente seriam concedidos de "porteira fechada", isto é, sem interferência dos demais partidos da coalizão na composição dos demais escalões.

Agora, no entanto, abrem-se as porteiras dos segundo e terceiro escalões de governo para assentar interesses não apenas de partidos, mas de grupos e personalidades dentro das próprias legendas. Segundo cálculo feito pelo jornal "O Estado de S. Paulo" na sua edição do último domingo, cargos que teriam orçamento para investimentos de pelo menos R$ 6,2 bilhões entraram numa disputa acirrada que envolve desde pequenas inimizades, futricas, contrariedades pessoais, brigas internas entre pessoas de um mesmo partido e até - e principalmente - dinheiro e poder de decisão.

O que teve mais repercussão, pelo menos até o momento, foi a decisão do presidente Lula de criar a Secretaria Nacional dos Portos, retirando-a do Ministério dos Transportes, do PR, para dá-la ao PSB, que ficou a ver navios. Isso está longe de ser apenas um prêmio de consolação. Se a administração de portos fosse algo tão desprezível, a administração do Porto de Santos, por exemplo, não teria sido o centro de grandes brigas internas dentro do PMDB paulista nos governos FHC, Itamar, Collor e Sarney. Nas administrações tucanas, o atual presidente do PMDB, ainda governista porém agora Lula, Michel Temer, esteve no centro de todas as negociações por esse terceiro - ou será segundo? - escalão. Se não tivesse importância, não seria centro de tantas disputas. Se já era um bom negócio, ficou ainda melhor, com a previsão de R$ 236 milhões de investimentos no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

A Fundação Nacional de Saúde (Funasa), por sua vez, tem tanta força que chegou até a derrubar um ministro (Alceni Guerra, responsável pela pasta da Saúde no governo Collor) no momento em que ele ameaçou colocar a mão no vespeiro. Em 2007, a Fundação tem no seu orçamento R$ 1,5 bilhão para investimentos e, nas palavras do seu atual presidente, Paulo Lustosa, é "uma máquina de fazer votos". A disputa envolve o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), do qual Lustosa é afilhado; o deputado Jader Barbalho (PMDB-PA) e o presidente do PMDB, Michel Temer. Entra na briga também a bancada goiana, que quer a Funasa como prêmio de consolação para o ex-senador Maguito Vilela. Somente nesse caso parece que houve uma reação efetivamente forte da chamada "bancada sanitarista", a maior parte dela do PT, mas que, bem ou mal, e desde a ditadura, mantém uma atuação mais técnica e menos política quando consegue espaço na Fundação - que rivaliza em poder com o próprio Ministério da Saúde.

E por aí vão as reivindicações. Mas, se todas elas seguirem o padrão de quanto dinheiro se administra e quantos votos se ganha, por certo o maior pesar será a recriação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). Órgão criado em 1959 no governo JK, tendo à frente o economista Celso Furtado, era parte fundamental dos projetos desenvolvimentistas de Kubitschek. Suas intenções iniciais foram inibidas por uma ditadura e, ao longo do tempo, sucumbiu às evidências de que se tornara um órgão de corrupção. Foi extinta em 1999. A sua recriação foi discutida durante todo o primeiro mandado de Lula, quando o hoje deputado Ciro Gomes (PSB-CE) era ministro, e seria até adequada aos princípios gerais do PAC. Com a disputa aberta, no entanto, não chega apenas a ser um temor, mas uma forte probabilidade, que a Sudene recomece de onde parou.

Mais do que a escolha do Ministério, as notícias que vêm à tona sobre a ocupação dos primeiro e segundo escalões do governo merecem toda a preocupação, embora sejam vistas como rotina. No mínimo, é a demonstração de que os dois anos tomados por CPIs e escândalos foram mera hipocrisia: tudo continua como dantes, no quartel de Abrantes.