Título: O sofrimento espanhol
Autor: Wolf, Martin
Fonte: Valor Econômico, 28/03/2007, Opinião, p. A13

Déficits em conta corrente importam dentro de uma união monetária? As respostas são "sim" e "não": não, porque não pode haver uma crise cambial; e sim, porque não pode haver uma crise cambial. Quando surgem divergências insustentáveis em competitividade, o ajuste geralmente acontece por meio de mudanças nos custos nominais relativos, particularmente da mão-de-obra. Quanto maior for o ajuste exigido, maior será o sofrimento.

O desafio representado pela divergência de competitividade dentro da zona do euro foi amplamente discutido no caso da Itália. A Espanha, porém, é ainda mais interessante. A Espanha, ao contrário da Itália, tem sido um enorme sucesso econômico; a Espanha, diferentemente da Itália, tem um enorme déficit em conta corrente; a Espanha, distintamente da Itália, tem desfrutado uma vasta expansão do setor de construção. A Espanha, desta vez como a Itália, porém, tem baixo crescimento da produtividade e competitividade externa declinante.

A pergunta, portanto, não é se o ajuste acontecerá, já que é certo que ocorrerá. É como acontecerá.

Entre 2001 e 2005, a zona do euro foi o gigante enfermo da economia mundial. Ao longo daqueles cinco anos, o crescimento médio da zona do euro foi de meros 1,4% ao ano. Como resposta, o Banco Central Europeu adotou uma política monetária expansionista. Mas o impacto das baixas taxas de juros foi maior não onde a demanda era mais fraca, e sim onde as condições para um surto imobiliário eram melhores, em especial, na Irlanda e na Espanha.

O desempenho econômico geral da Espanha tem sido de um tipo que certamente gera euforia. Como assinala a mais recente pesquisa econômica da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE): "o país experimentou crescimento vigoroso pelo 13º ano consecutivo. A vitalidade econômica teve o efeito de reduzir a disparidade em Produto Interno Bruto com a média da zona do euro, de 20%, para abaixo de 12%, ao longo da década passada".

Esta expansão impressionante foi puxada, no lado da oferta, pelos enormes aumentos na taxa do emprego, inclusive de imigrantes. Entre 1998 e 2006, o emprego contribuiu em 3 pontos percentuais do aumento anual de 3,5% no PIB potencial da Espanha e a produtividade, com apenas 0,5 pontos percentuais. A contribuição do "fator produtividade" - ou o incremento na eficácia com a qual os fatores de produção são usados - foi negativa, em -0,2 pontos percentuais ao ano.

Enquanto isso, no lado da demanda, o consumo interno e o investimento, particularmente a construção, impulsionaram a economia. Entre 2002 e 2006, o setor de construção cresceu a uma taxa média próxima aos 6% ao ano, reais. Até 2004, o investimento apenas nas novas habitações foi responsável por 8% do PIB, um número só superado entre os membros da OCDE pela Irlanda.

Enquanto isso, o saldo externo se deteriorava ano a ano. O déficit em conta corrente de US$ 107 bilhões do ano passado foi o segundo maior no mundo depois dos EUA. A pouco abaixo de 9% do PIB, foi também o segundo maior na zona do euro nesta mensuração, após o da Grécia. Realmente, sem os déficits da Espanha, a zona do euro poderia ter apresentado um considerável superávit em conta corrente, refletindo em grande parte a passagem da Alemanha ao superávit e, assim, teria exacerbado os "desequilíbrios" globais.

-------------------------------------------------------------------------------- Espanha desfrutou maravilhoso surto de crescimento num momento de demanda fraca na zona do euro e de política monetária expansionista --------------------------------------------------------------------------------

"E daí?" poderíamos perguntar. Por que deveria o aparecimento dos chamados desequilíbrios dentro da zona do euro ter importância maior do que o balanço de pagamentos existente entre Escócia e Inglaterra? De fato, não seriam os vastos fluxos de capital, que são a contrapartida dos superávits e déficits em conta corrente, a meta que a criação de uma união monetária deveria ter como alcançado?

Na ausência de risco monetário e de expropriação, os investidores buscam os melhores retornos nos lugares em que eles podem ser encontrados. Se isso acabar gerando um grande volume de captação de empréstimos líquidos por parte de pessoas que vivem em um determinado país (ou região), isto certamente não tem qualquer significado.

Até certo ponto, este argumento está correto. Se os investidores estão alheios à interdependência dos riscos que estão correndo, porém, poderão descobrir que seus devedores são substancialmente menos dignos de crédito do que haviam pensado. Mais precisamente, os financiadores de um crescimento acelerado no setor de construção poderão descobrir que uma desaceleração no mercado imobiliário local afeta a solvência de muitos devedores. Eles poderão decidir retirar o crédito ou parar de oferecer crédito novo de forma abrupta. Se isso acontecer, o fato causará uma recessão regional, em meio à contração da atividade do setor de construção.

Portanto, dentro de uma união monetária, o risco monetário se transforma em risco de crédito. Além disso, mesmo uma quebradeira generalizada poderá não importar muito se os preços e os salários forem razoavelmente flexíveis em termos reais e nominais, ou se for fácil expandir a produção de produtos e serviços negociáveis competitivos. O ajuste então é relativamente simples, como demonstrou a experiência nas economias nórdicas e do Leste Asiático no passado não tão distante.

Em casos assim é relativamente fácil substituir a demanda interna perdida pela demanda externa. Mas é difícil ter certeza de que isso poderia se aplicar à Espanha quando terminar a expansão acelerada dos setores imobiliário e de construção, por seis motivos: primeiro, a Espanha sofreu uma perda considerável em competitividade; segundo, a capacidade tecnológica dos setores de bens negociáveis é fraca, em muitas dimensões; terceiro, grande parte da iniciativa recente de investimento da Espanha migrou para a produção de não-negociáveis, particularmente edifícios; quarto, as indústrias da Espanha são relativamente vulneráveis à concorrência de produtores com salários mais baixos na Europa Central e Oriental e na Ásia; quinto, o crescimento da produtividade subjacente tem sido baixo, o que dificulta restaurar a competitividade; e, por fim, as negociações salariais são bastante rígidas e, acima de tudo, insensíveis às condições na zona do euro.

A Espanha desfrutou um maravilhoso surto de crescimento num momento de fraca demanda na zona do euro e de política monetária expansionista. À medida que a zona do euro se recupera, a política monetária está sendo apertada. Se por um lado a Espanha se beneficiará da maior demanda entre seus principais parceiros, seus devedores, por outro lado, enfrentarão uma carga de serviço da dívida consideravelmente maior. Esta situação deverá aproximar o momento em que a captação de empréstimos vinculados ao setor imobiliário e os surtos no setor de construção findarão. A partir de então, os ajustes precisarão começar e os políticos espanhóis precisarão gerenciar todas as conseqüências.

Para a Espanha, tempos melhores para a zona do euro prenunciam uma ameaça muito maior para si mesma. Será necessário fazer ajustes para um caminho diferente e mais sustentável. Em uma década ou mais teremos uma idéia bem melhor do que hoje acerca do ponto ao qual uma das mais bem sucedidas economias da Europa até agora poderá prosperar no âmbito da camisa-de-força da união monetária.