Título: Dívida pública e insegurança jurídica
Autor: Brando, Flávio José de S.
Fonte: Valor Econômico, 28/03/2007, Legislação & Tributos, p. E2

O Brasil está prestes a tornar-se o único país do mundo onde o poder público somente precisará cumprir as leis e ordens judiciais de pagamento anualmente, até 3% das despesas líquidas para os Estados e 1,5% para as prefeituras. O que exceder, ficará indefinidamente acumulado para os exercícios seguintes, dentro desses limites, sem prazo final para pagamento.

Somente para o estoque atual de precatórios, ou seja, sem entrada de nenhum outro débito, a prefeitura de São Paulo levaria mais de 45 anos para solução do problema e o Estado do Espírito Santo acima de 140 anos.

Seria a mesma coisa que aprovar uma lei limitando o pagamento de dívidas judiciais para as pessoas físicas a 5% de seu salário mensal: um enorme estímulo para atrasos nos pagamentos de aluguel, cartão de crédito, cheque especial etc, pois a execução estaria sempre dentro deste confortável limite.

Como se isto não bastasse, 70% destes percentuais seriam utilizados para leilões reversos, ou seja, o pobre do credor judicial que oferecesse o maior desconto, receberia primeiro. Querem acabar com a ordem cronológica de pagamentos.

Esta possível consagração do calote judicial público, previsto na redação original da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 12, poderá comprometer o "maior plano de aceleração de crescimento jamais visto neste país", o PAC.

Vejamos porquê. Os Estados e municípios (a União é razoável pagadora) praticam há décadas a inadimplência nas ordens de pagamento assinadas pelo Poder Judiciário, os chamados precatórios, documentos finais de longos processos onde o Estado foi perdedor.

O Supremo Tribunal Federal (STF) levantou um estoque acumulado de R$ 64 bilhões, mas os credores entendem que pode ser até o dobro, por falta de atualização, juros ou mesmo descontrole. Admitamos R$ 100 bilhões.

Duas moratórias extremamente favoráveis aos devedores já foram introduzidas na Constituição, em 1988 (oito anos) e 2000 (dez anos), com resultados pífios. A maioria dos devedores continua inadimplente e as sanções previstas funcionam mal: o seqüestro de rendas leva anos e raramente é efetivado e o STF jamais puniu um político por crime de responsabilidade.

Os devedores públicos crônicos insistem no mito das "dívidas impagáveis", mas recentes estudos econômicos indicam que somente a cobrança efetiva de parte da dívida ativa - a União tem R$ 600 bilhões de créditos, o Estado de São Paulo acima de R$ 30 bilhões, e a prefeitura de São Paulo R$ 29,4 bilhões - seria suficiente para pagamento dos precatórios.

Fica claro, até aqui, que o calote do passado pode ser renovado e consolidado, mas e o futuro? A situação será ainda pior.

Imaginemos obras de infra-estrutura, portos, estradas, usinas de energia, saneamento, sob o regime das Parcerias Público Privadas (PPP´s)

Após investimentos de bilhões, os empresários trabalhariam e aguardariam seu retorno contratual, e, em caso de desequilíbrio financeiro, o poder público diretamente, ou por meio de suas autarquias, os compensaria através de fundos organizados para este fim, "de natureza privada e fora do regime de precatórios".

Tais fundos são obscenamente inconstitucionais e imorais, pois, se existem recursos e ativos para garantir possíveis, futuros e eventuais credores, porque não pagar os credores judiciais existentes, conforme as ordens do Poder Judiciário?

Desde o direito romano, isto constitui fraude a credores, ou seja, o desvio de bens para garantia de novos credores, em detrimento de antigos.

Querem criar credores de quinta e primeira classe.

Isto posto, sem os "fundos garantidores", que certamente serão legitimamente atacados pelos atuais credores judiciais, restaria aos investidores em PPP´s (todos são iguais perante a lei), entrar em juízo, e, após anos no calvário processual, receberiam finalmente o seu precatório.

Hipoteticamente, digamos que um governador de tendência "bolivariana" decida rescindir contratos ou desapropriar ações de empresas concessionárias de rodovias, saneamento, bancos, jornais, televisões, fábricas, universidades particulares.

Pela redação original da PEC nº 12, o problema da indenização estaria resolvido: após anos no Judiciário, os proprietários poderiam optar entre o leilão judicial reverso, ou aguardar na fila dos 30% de 3% ou 1,5%, sem qualquer prazo para pagamento.

Qual empresa, quais investidores terão a ousadia de investir no PAC sob este regime insano que se pretende introduzir na Constituição Federal?

Ainda há tempo para correção dessa Proposta, que não resiste aos testes mínimos de aritmética, moral e direito.

Os credores judiciais e seus advogados estão dispostos a dialogar em bases realistas e práticas, com base em números e estudos econômicos, respeitando-se os princípios constitucionais e as decisões do Poder Judiciário brasileiro.

Já existe uma proposta alternativa de redação àquela original da PEC nº 12. A proposta sugere a criação de Sociedades de Propósito Específico (SPE's), administradas por credores, tribunais e instituições financeiras, que fariam a cobrança da dívida ativa, venderiam bens ociosos do Estado e pagariam os precatórios, com respeito à ordem cronológica, trânsito em julgado das ações e outras cláusulas pétreas da Constituição Federal.

Flávio José de Souza Brando é Advogado e presidente da Comissão de Precatórios da OAB-SP

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