Título: Confronto sem vencedores entre a Câmara e o Supremo
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 26/12/2012, Opinião, p. A10

Se as decisões sobre os réus do mensalão não fossem cumpridas com boa defasagem de tempo - meses até que todos os embargos sejam julgados e as sentenças transitem em julgado -, o conflito entre o Supremo Tribunal Federal e o Congresso deixaria de ter contornos de ópera bufa que assumiu para se tornar crise séria. Trechos dúbios da Constituição, ministros vaidosos do STF, indispostos com contestações a sua sabedoria, e um presidente da Câmara dos Deputados impetuosos, dado a rompantes, concorreram para uma onda de discórdias.

Não há dúvidas de que o direito do Supremo de cassar mandatos de representantes eleitos pelo povo é contestável. O próprio tribunal, que por 5 a 4 assumiu essa prerrogativa agora, há 15 anos se manifestou na direção contrária, a de que só a Câmara poderia fazê-lo. Esse era também o entendimento do ministro Celso de Mello, que não apenas desempatou o julgamento atual, pela cassação, como pouco contribuiu para acalmar os ânimos ao declarar que a desobediência à decisão do colegiado seria "intolerável, inaceitável e incompreensível".

A justificativa para a mudança de posição do STF foi a Lei Ficha Limpa. A maioria dos ministros entendeu que, se condenados, não podem se candidatar ao Legislativo, também não poderiam manter cargos após decisão desfavorável da Justiça. Uma prova de que a questão é especiosa é o fato de que, se prevalecesse a competência da Câmara de cassar mandatos de deputados, seria bem possível ver parlamentares pregando em plenário à tarde para, em seguida, recolherem-se à prisão.

Com polêmica de alta voltagem em curso, o presidente da Câmara, Marco Maia, petista gaúcho, defendeu, antes da questão ser julgada, que o Supremo não poderia se meter nesse assunto e que estaria francamente disposto a desacatar se ele decidisse algo diferente. Foi um discurso errado em momento dos mais inapropriados. Em seu voto, Celso de Mello reagiu e ampliou o confronto ao criticar "reações corporativas", "equivocado espírito de solidariedade" e outras mazelas facilmente atribuíveis aos deputados.

Como infortúnios nunca vêm sozinhos, no dia seguinte surgiu novo conflito. Dando praticamente razão aos que enxergam na omissão do Congresso a abertura para que o Supremo se manifeste sobre questões atinentes a outro poder, o petista Alessandro Molon (RJ) acionou o STF para que a Câmara não votasse a derrubada do veto da presidente Dilma Rousseff à repartição dos royalties a todos os Estados. O ministro Luiz Fux, ao sustar o que chamou de "anarquia administrativa", configurou a anarquia legislativa. Fux disse que o veto teria de ser examinado pela ordem, sob pena de trancar a pauta da Câmara, e que nenhum deles poderia furar a fila, mesmo se escolhido o regime de urgência. Como o Congresso, por inação, deixou de examinar tempestivamente 3.060 vetos, a análise do veto sobre royalties levaria anos. Foi o que constatou grande parte dos deputados, após uma megassessão de apreciação. Os deputados desistiram e deram-se férias.

Depois disso, a fúria substituiu a razão. Maia misturou estações e ofereceu a Câmara para abrigar os deputados condenados no mensalão, que poderiam ter prisão decretada no recesso do STF. Não se tratava mais da questão da perda de mandato, em que há espaço real para a polêmica, mas do cumprimento de ordem judicial emitida pelo STF - que não veio. Na sexta, o presidente do STF, Joaquim Barbosa, não viu motivos para mandar os réus imediatamente à cadeia.

Ainda na semana, a CPI do Cachoeira foi enterrada com gala, com um relatório vexaminoso de duas páginas que despachou o assunto para o Ministério Público e a PF. Criada por petistas sob inspiração do ex-presidente Lula, para constranger tucanos, a CPI livrou a barra de todos os suspeitos, inclusive a construtora Delta, beneficiária de bilhões de reais em contratos públicos.

A solução política justa seria reconhecer o poder de cassação da Câmara, com mudança posterior da lei. A solução dada à CPI do Cachoeira nutre as piores dúvidas sobre os deputados de cassar os mensaleiros ou seus pares. A Câmara peca com frequência, mas o STF já serviu à ditadura militar e a desígnios antidemocráticos ao cassar pessoas eleitas pelo povo. Seu processo de seleção não é exatamente transparente e maiorias nocivas à nação podem eventualmente se formar. O STF não deve pairar acima de tudo e de todos.