Título: Câmbio fora do lugar
Autor: Gala, Paulo e Lucinda, Cláudio
Fonte: Valor Econômico, 09/04/2007, Opinião, p. A10

O debate sobre os efeitos do câmbio na economia brasileira persiste. Muitos analistas tentam identificar se o movimento de nossa moeda representa uma acomodação natural e de equilíbrio ou se alguma coisa está errada e nossa taxa de câmbio caminha para uma posição "fora do lugar". Existe uma grande controvérsia entre os economistas a respeito da existência de um desequilíbrio e sobre as maneiras de se mensurar esse possível desequilíbrio. Criou-se já há algum tempo uma literatura sobre o problema que consagrou entre os economistas um conceito conhecido como desalinhamento cambial. A principal preocupação desta literatura está na identificação de situações de desalinhamento, partindo já do princípio de que esses casos são especialmente maléficos para dinâmicas de crescimento.

O foco está na discussão das diversas metodologias de cálculo do nível do câmbio real de equilíbrio. Além dos tradicionais problemas de medidas de câmbio real, a literatura se depara com o desafio de definir um conceito de câmbio de equilíbrio, para depois caracterizar uma situação de desalinhamento. Dois métodos são mais comuns: medidas de desvio de paridade de poder de compra (PPC) feitas a partir da comparação do preço em dólares de uma mesma cesta entre vários países e medidas de posição do câmbio baseadas em alguma noção de equilíbrio macroeconômico. O primeiro baseia-se em tradicionais comparações de preços internacionais ajustadas pelo efeito de aumentos de produtividade. Mede-se o preço de uma determinada cesta de bens num dado país e compara-se esse valor em dólares com o nível de renda per capita. Segundo essa metodologia, a taxa de câmbio real estará excessivamente apreciada (desalinhada) se os preços domésticos transformados em dólares forem muitos elevados em comparações internacionais - o exemplo clássico é o índice Big Mac. O segundo método leva em consideração medidas de equilíbrio interno e externo na definição da posição do câmbio real de equilíbrio, ou seja, plena utilização de fatores de produção e situação do balanço de pagamentos, dado o estado de uma série de variáveis.

Para as medidas de desalinhamento baseadas em desvios de PPC ajustadas por variações de produtividade, o câmbio real estará fora do lugar se estiver relativamente apreciado em relação ao nível de renda per capita, que também é utilizado na obtenção da produtividade e, portanto, da remuneração relativa dos bens não comercializáveis em relação aos comercializáveis. Um câmbio real de equilíbrio será, portanto, aquele que torna compatível o nível de produtividade com os salários reais em cada país. Para câmbios reais excessivamente apreciados, o salário real estará desalinhado em relação à produtividade e a capacidade produtiva da economia, o que implicará potencialmente numa situação de excesso de absorção (importações) e endividamento. Para o segundo método, um câmbio de equilíbrio seria aquele presente numa situação de razoável crescimento econômico com uma trajetória de conta corrente sustentável. Um câmbio real de equilíbrio estaria associado ao pleno emprego dos fatores de produção (equilíbrio interno) e a um financiamento razoavelmente tranqüilo das contas externas (equilíbrio externo).

-------------------------------------------------------------------------------- Existe um padrão de desalinhamento cambial que se repete mesmo quando usadas variáveis diferentes --------------------------------------------------------------------------------

Como fica então a posição da taxa de câmbio brasileira analisada desses pontos de vista? Em relação à primeira metodologia, parece ainda difícil argumentar que estamos em equilíbrio interno, na medida em que a taxa de desemprego continua alta e a taxa de crescimento brasileira, mesmo após a revisão do IBGE, continua entre as piores do mundo emergente. Do ponto de vista das contas externas, sabemos que nosso superávit comercial ainda depende muito do elevado preço das commodities mundiais. A última edição do semanário The Economist mostra que o preço dos metais, por exemplo, continua, em média 100% acima do valor de dois anos atrás, o que não parece ser uma situação sustentável ou de "equilíbrio". Em relação à abordagem de desvios da paridade do poder de compra, também chama a atenção o fato de que muitos produtos em São Paulo já custam mais caro do que nas principais cidades do mundo. Na edição de fevereiro do mesmo semanário encontramos, por exemplo, a informação de que numa lista de quase 50 países (desenvolvidos e em desenvolvimento) o preço do Big Mac em São Paulo ficaria na 14ª posição dos mais caros e entre as 10 primeiras posições usando as cotações do real dessa semana (aproximadamente U$ 3,12).

De qualquer maneira, acreditamos que a melhor forma para organizar o debate é por meio da investigação empírica. Um estudo econométrico realizado por nós, que utilizou diferentes variáveis com o objetivo de servir de controles dos efeitos de alterações no equilíbrio interno e externo, apontou dois resultados interessantes. O primeiro deles, referente à taxa de câmbio real, indica que a utilização de médias históricas como aproximação de uma "taxa real de câmbio de equilíbrio" é um procedimento inadequado. Sem considerarmos os efeitos de variáveis que afetam o equilíbrio interno e o equilíbrio externo da economia, a simples média das taxas de câmbio real ao longo de um período não é uma aproximação válida do que seria uma posição de equilíbrio da taxa. O segundo ponto foi justamente avaliar qual seria esta "taxa de câmbio real de equilíbrio", consistente com um equilíbrio interno e externo. A partir desta taxa, pudemos calcular o grau de desalinhamento cambial implícito pela taxa de câmbio real verificada. O gráfico mostra a evolução deste desalinhamento, calculado a partir de um modelo específico. É importante notar que o padrão ali verificado se repete se utilizarmos diferentes conjuntos de variáveis para capturar os efeitos de alterações no equilíbrio interno e externo.

O gráfico ilustra um ponto recorrente em nossos resultados: a taxa de câmbio real tem se movido consistentemente além do que seria de se esperar, dado o comportamento do equilíbrio interno e externo. Ainda que estes resultados não possam ser considerados como uma justificativa para políticas específicas, o que está mal colocada é a argumentação de que o desalinhamento cambial não existe.

Paulo Gala e Cláudio Lucinda são professores da Escola de Economia de São Paulo, da FGV.