Título: Processo de paz anda aos trancos na Colômbia
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Fonte: Valor Econômico, 09/04/2007, Especial, p. A12

AP A economia vai bem, mas o presidente vai mal: o colombiano Álvaro Uribe vive, no segundo mandato, o período de maior dificuldade política de seu governo O segundo mandato [presidencial de Alvaro Uribe] está se revelando mais complicado do que o primeiro"

Até gora, o processo de paz dependeu da vontade do presidente. Faltam trabalho em equipe e instituições."

Nos arredores de María la Baja, um vilarejo sem nada de especial na terrivelmente calorenta costa colombiana no Caribe, a estrada é margeada de casebres com cobertura de folhas. Essas são as novas moradias de aproximadamente 7 mil pessoas expulsas de suas pequenas propriedades agrícolas em morros vizinhos pela violência. Elas dizem que seus problemas começaram quando os guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) surgiram nos morros em 2000, roubando seu gado. A situação piorou ainda mais quando paramilitares de direita começaram a assassinar pessoas que julgassem ser guerrilheiros e obrigaram outras a vender ou entregar suas terras sob a ameaça de armas.

Mas, nos últimos anos, "as coisas melhoraram bastante", diz Carlos Ortiz, um de seus líderes. A razão: em 14 de julho de 2005, o grupo paramilitar local entregou suas armas e dissolveu-se, nos termos de um acordo de paz com o governo do presidente Álvaro Uribe que motivou a desmobilização de 30 mil dos integrantes das milícias em todo o país. Como parte da intensificação da segurança por iniciativa de Uribe, fuzileiros navais estabeleceram uma base na periferia da cidade, ao passo que a polícia patrulha a principal rodovia ao norte do porto de Cartagena.

"Agora, nós voltamos para nossas propriedades agrícolas durante o dia", diz Julio César Azeredo, outro dos expulsos de suas terras. Mas, acrescenta ele, "não é seguro ficar lá à noite". Se este rincão do norte colombiano não é mais palco de massacres sangrentos que ocorriam poucos anos atrás, sua recém-adquirida paz é frágil. "As pessoas perderam a confiança em todo mundo, elas não confiam em qualquer autoridade", diz Giuseppe Svafrena, um sacerdote católico italiano que os está ajudando.

Frágil a paz pode ser, mas o progresso na segurança em lugares como María la Baja é bastante real. Por causa desse sucesso, Uribe conquistou um segundo mandato de quatro anos com uma vitória esmagadora, ao obter 62% dos votos numa eleição em maio passado. Mas seu segundo mandato está se revelando mais complicado do que o primeiro.

Uribe defronta-se com dois problemas imediatos. Um deles envolve o futuro dos ex-paramilitares - e o risco de que muitos retornem à prática de crimes violentos. O outro envolve seu passado: o governo foi abalado por uma série de revelações sobre vínculos entre políticos, autoridades e paramilitares. Essas revelações (sobre a denominada "parapolítica") criam o risco de graves prejuízos à imagem de Uribe no exterior, particularmente nos EUA. Mas para a maioria dos colombianos, a questão premente é a consolidação dos avanços na segurança. Em pesquisas de opinião, cerca de 70% dos consultados continuam a apoiar Uribe, apesar do escândalo parapolítico. Para compreender o porquê, é preciso conhecer um pouco da história recente do país.

Durante as décadas de 1980 e 1990, o movimento guerrilheiro esquerdista das Farc e seu rival de menor dimensão, o ELN [Exército de Libertação Nacional, também de orientação marxista], cresceu incessantemente, atingindo um pico de quase 20 mil guerrilheiros. Essa expansão deveu muito a dinheiro de tráfico de drogas, seqüestros e extorsões. A guerrilha foi também beneficiada pela insuperável geografia colombiana e por um Estado relativamente fraco. O reverso da medalha de uma longa tradição democrática foi que os políticos colombianos nunca permitiram que o exército se tornasse forte.

Frente a isso, alguns comandantes do Exército e proprietários de terras formaram milícias paramilitares (denominadas grupos de "autodefesa") para combater a guerrilha. Mas, alguns dessas milícias passaram rapidamente a ser controladas por traficantes de drogas, e muitas impuseram um reino de terror igual ou ainda pior do que o imposto pela guerrilha. A Colômbia começou a parecer um Estado inoperante. Isso levou Andrés Pastrana, o antecessor de Uribe, a começar a fortalecer as forças de segurança e a buscar ajuda dos Estados Unidos.

Uribe foi eleito por prometer um endurecimento, depois que as Farc demonstraram nenhum interesse em um acordo nos três anos de conversações com Pastrana. Ele ampliou em um terço as forças de segurança, mobilizando mais 60 mil soldados e 30 mil policiais. Ele alocou destacamentos policiais permanentes em 150 municípios (de um total de 1.080) onde eles não existiam. criou uma nova força de 20 mil "soldados populares" engajados em regime de meio período para desempenhar funções de guarda local. seis novos batalhões montanheses ocuparam os altos maciços andinos que tinham funcionado como corredores e refúgio para as Farc. Ele converteu o Exército em uma força ofensiva, com nove novas brigadas móveis.

Tudo isso alterou o curso da guerra. As Farc foram expulsas da região central da Colômbia, o populoso triângulo com vértices em suas três principais cidades, Bogotá, Medellín e Cáli. Pela primeira vez em anos, os colombianos podem viajar em automóvel entre a maioria das cidades de seu país sem correr o risco de seqüestro ou aprisionamento. Em parte, como resultado disso, a economia reagiu positivamente, à medida que um leque de empresas - de companhias petrolíferas a companhias industriais incrementaram seus investimentos. "Meu governo iniciou o processo de resgate do país", diz Uribe.

Esse fortalecimento da segurança e a reputação construída por Uribe, de implacável inimigo da guerrilha, permitiu que seu governo convencesse os paramilitares, agrupados sob as forças das Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), a se desarmar. Isso aconteceu segundo os termos de uma controvertida Lei de Justiça e Paz. Essa legislação estipula que os acusados de massacres ou outros atos hediondos podem beneficiar-se de sentenças reduzidas (não superiores a oito anos) se confessarem e devolverem bens obtidos ilegalmente. O maior estímulo é que o governo não os extraditarão para serem julgados nos EUA por tráfico de drogas, desde que cooperem com as autoridades.

Esse processo de paz foi extremamente controvertido. Um elenco de críticas diz respeito a seus termos, e outro, à sua implementação. Muitos grupos de defesa dos direitos humanos, vítimas dos paramilitares e grande parte da oposição consideraram a lei excessivamente leniente e sua aplicação demasiado tolerante. Uma igual opinião manifestou o tribunal constitucional, que endureceu a lei.

Foi somente em agosto passado que os principais líderes foram presos, para permanecer detidos enquanto aguardam seu julgamento. Rafael Pardo, um senador liberal que rompeu com o presidente por divergências em relação à lei, diz acreditar que os paramilitares desmobilizaram seu dispositivo anti-insurgência e abandonaram suas atividades de tráfico de drogas para evitar uma extradição, mas estão migrando, incontidos, para outras atividades criminosas.

Os que apóiam Uribe argumentam que a Colômbia está fazendo algo que nenhum país conseguiu. "É um processo de paz envolvendo um grupo armado não derrotado, no qual a justiça está sendo aplicada sem anistia", diz Eduardo Pizarro, que preside a comissão de reconciliação governamental. Uribe acusa seus críticos de usar dois pesos e duas medidas, uma vez que nunca se queixaram (e alguns até se beneficiaram) de conversações de paz anteriores com movimentos guerrilheiros quando foram oferecidas anistias irrestritas.

Mas não há dúvida de que o processo é conturbado. A Secretaria de Justiça - que na Colômbia é um braço do Judiciário, e não do Executivo - está assoberbada. Foi constituída uma unidade especial de 35 advogados, mas ela necessita mais pessoal e recursos. Cerca de 25 mil pessoas registraram-se como vítimas dos paramilitares.

Mario Iguarán, o promotor-geral da Colômbia, diz que as acusações poderão vir a ser formuladas contra até 400 dos líderes; ele espera dar início aos julgamentos de 57 chefes presos ainda neste ano.

O esquema criado pelo governo para integrar os ex-paramilitares à vida civil tem sido imperfeito. Eles recebem uma renda mensal de até 358 mil pesos (US$ 162), mas dois terços deles ainda não receberam um treinamento prometido e apenas 40% estão empregados. O governo efetivou as desmobilizações "com um sistema apenas recém-criado e o sistema entrou em colapso", diz Frank Pearl, que no ano passado Uribe trouxe do setor privado para coordenar o programa.

O grande temor é de que muitos retornarão à violência. As melhores estimativas são de que entre 2,5 mil e 3,6 mil aderiram à "segunda geração de grupos paramilitares". Mas autoridades dizem que alguns destes pertencem a organizações dedicadas ao tráfico de drogas ou tratam-se apenas de gangues criminosas.

A despeito de suas falhas, o processo de paz colombiano adquiriu rapidamente um ímpeto próprio. Um dos mais fortes sintomas disso é o escândalo parapolítico. Este irrompeu quando a polícia prendeu um líder paramilitar que não havia se apresentado em local combinado e confiscou seu computador. O aparelho continha um tesouro de informações referentes a contatos políticos dos paramilitares, que em momento anterior vangloriam-se de controlar um terço do Congresso colombiano.

As revelações são embaraçosas para Uribe. Os dez políticos (nove legisladores e um governador provincial) presos até agora, todos da costa setentrional, pertencem a partidos que apóiam Uribe. Mas a maioria das acusações contra eles data de 2002, quando eles apoiavam o candidato liberal oficial contra Uribe, que concorreu como independente. Mais prejudicial foi a detenção de Jorge Noguera, que o presidente nomeou para o comando do serviço de inteligência.

Os adversários de Uribe citam todos esses fatos para alegar que o presidente tem vínculos com os paramilitares. Mas não há evidências disso. O presidente contra-argumenta dizendo que apoiou investigações judiciais e confissões plenas os paramilitares. "O país precisa conhecer profundamente a tragédia para dar-se conta do futuro de que necessitamos: um país de instituições, sem guerrilhas, paramilitares, traficantes de drogas ou corrupção", disse ele em entrevista à "Economist". Se Noguera for declarado culpado, o presidente Alvaro Uribe prometeu pedir desculpas à nação.

O fato de as investigações do "escândalo parapolítico" terem avançado tanto é, em parte, resultado dos progressos na segurança. "Testemunhas estão se apresentando porque não precisam temer", diz Iguarán. "Quem antes ousaria ir a um promotor ou juiz distrital e declarar que o comandante das AUC estava mancomunado com o governo, um prefeito ou congressista? Trata-se de uma conseqüência não prevista da legislação de justiça e paz."

Isso também revela a penetração generalizada do meio político e do governo pelos paramilitares. As autoridades estão discretamente empenhadas numa limpeza similar nas Forças Armadas. Um coronel condecorado foi acusado perante um tribunal civil, no ano passado, depois que seus subordinados o acusaram de contabilizar civis assassinados como guerrilheiros mortos. O ministro da Defesa, Juan Manuel Santos, está expurgando gradualmente outros oficiais e desenvolvendo uma reforma para o treinamento de militares. Ele diz que controle de territórios, e não contagem de mortos, será, doravante, o critério de desempenho do Exército.

A Colômbia está apenas no início de um longo e difícil caminho para a paz. A limpeza no Exército e uma condição necessária para erradicar totalmente os paramilitares, afirma Alejandro Reyes, um sociólogo na Universidade Rosario, em Bogotá. "Do contrário, a população civil não colaborará com as forças de segurança."

Essa colaboração é vital. As Farc estão debilitadas, mas não vencidas. Elas acham que a história marcha a seu favor: no passado, o presidente venezuelano Hugo Chávez manifestou simpatia por elas; o mesmo havia feito Rafael Correa, o novo presidente do vizinho Equador.

Serão necessários mais combates para persuadir os guerrilheiros a negociar, que dirá submeterem-se à Lei de Justiça e Paz.

E a parapolítica implica o risco de enfraquecer a força de Uribe frente ao Congresso. Uma reforma tributária que promoveria um aumento nas receitas do governo foi diluída. Mas o governo conseguiu, efetivamente, manter em vigor um imposto sobre a riqueza que deverá lhe assegurar US$ 4 bilhões ao longo dos próximos quatro anos. Esse dinheiro será usado para comprar mais helicópteros e equipamentos de vigilância visando tentar localizar a liderança das Farc.

A outra tarefa é tentar promover uma segurança duradoura em lugares como María la Baja. Lá, Pedro Vásquez, um ex-policial que foi líder paramilitar durante sete anos, diz que os habitantes da cidade continuam a procurá-lo com queixas sobre crimes e extorsões "porque não confiam na polícia". Parte de seus comandados querem voltar à ação, Algo que ele não quer fazer.

Carlos Gaviria, do Pólo Democrático, de centro-esquerda, e adversário derrotado por Uribe na eleição do ano passado, diz ser necessário mais do que apenas a presença do Exército. O Estado deveria também estar presente - com "escolas, hospitais e geração de empregos".

Até gora, o processo de paz colombiano dependeu da vontade e da motivação do presidente, um "workaholic" cujo semblante exibe a palidez de uma fadiga permanente. O que falta são trabalho em equipe e instituições. Luis Alfonso Hoyos, que comanda a agência presidencial para desenvolvimento social, destaca orgulhosamente uma sala de controle vizinha a seu gabinete, onde representantes de 13 ministérios coordenam políticas e ações. Mas isso acontece em Bogotá, muito distante de lugares como María la Baja.