Título: Indústria açucareira argentina em xeque
Autor: Rocha, Janes
Fonte: Valor Econômico, 09/04/2007, Agronegócios, p. B14

A onda do etanol trouxe à tona na Argentina um tema que o setor sucroalcooleiro do país tenta evitar há pelo menos dez anos: a salvaguarda sobre o açúcar. Os produtores de cana da região do Noroeste argentino (formada pelas Províncias de Tucumán, Salta e Jujuy) querem entrar no promissor mercado de etanol, mas sabem que, quando isso acontecer, abrirão o flanco para o Brasil exigir o fim da barreira, um dos maiores tabus do Mercosul.

Por pressão da Argentina, liderada pelos engenhos de cana de Tucumán e seu poderoso lobby político, o açúcar nunca foi internalizado no bloco e sequer conta com um regime especial, como os automóveis. Simplesmente não faz parte do mercado comum. Há 12 anos foi imposta uma barreira móvel à importação, cujo piso é 20%, independentemente da procedência. E ponto final.

Agora, estimulados por uma nova lei de promoção dos biocombustíveis, produtores maiores e melhor preparados tecnologicamente começaram a instigar seus pares para iniciar um debate sobre o tema.

À favor do debate estão Jorge Rocchia Ferro, dono da Cia. Azucarera Los Balcanes - com duas grandes propriedades nas cercanias de San Miguel, capital da Província de Tucumán -, e o Engenho San Martin de Tabacal, da Província de Salta, que desde 1996 pertence ao fundo de investimentos americano Seabord. Juntos, esses engenhos respondem por entre 30% e 40% da produção de álcool do país, que totaliza 200 milhões de litros, 90% de cana. Cerca de 110 milhões de litros ficam no mercado interno e o resto é exportado.

Do outro lado estão a maioria dos engenhos do país. "A discussão sobre a entrada da Argentina no etanol foi evitada ao máximo entre os produtores de Tucumán, que sabiam ser inevitável falar de abertura", afirma Gustavo Vergagni, consultor da Associação Argentina de Biocombustíveis. Mas eles foram sacudidos pelo enorme interesse de investidores de todo mundo na produção do combustível, atiçado após o discurso de janeiro de George W. Bush. Foi ali que o presidente americano disse que os EUA estabeleceram a meta de substituir 20% de seus combustíveis automotores por biocombustíveis. Logo depois, EUA e Brasil fecharam acordo para integrar a produção nas Américas.

Mais do que divididos, os produtores argentinos estão diante de um dilema. Isso porque, neste ano em que eles estimam repetir o recorde de 2006, com mais de 20 milhões de toneladas de cana, os preços externos do açúcar não param de cair. Desde 2006, a tonelada já recuou US$ 100, para cerca de US$ 340.

Em fevereiro, o governo nacional sancionou uma lei determinando que, a partir de 2010, serão adicionados pelo menos 5% de biocombustíveis à gasolina, o que criará uma demanda adicional de 640 mil toneladas de biodiesel e 160 mil toneladas de etanol.

"Seria inimaginável fazer um acordo em álcool sem um acordo mais ou menos integral [em açúcar] com o Brasil. Se a Argentina começar a consumir biocombustíveis originados de cana, há o risco de o Brasil reclamar do fim das assimetrias", diz Jorge Casanova, presidente da Câmara de Exportadores de Álcool da Argentina. "Mas basta ver o que produz um e outro para perceber que as assimetrias continuam". O Brasil produz 430 milhões de toneladas de açúcar por safra; a Argentina, 2,3 milhões.

É uma visão comum entre os participantes do mercado no país vizinho. Dos mais conservadores aos mais abertos defensores da entrada da Argentina na onda dos biocombustíveis, todos reconhecem que baixar a salvaguarda significaria a destruição do setor açucareiro argentino, hoje formado por 22 engenhos e centenas de pequenos e médios produtores de cana.

No ano passado, a moagem de cana atingiu 20,5 milhões de toneladas no país. Além das 2,3 milhões de toneladas de açúcar, foram produzidos 210 milhões de litros de álcool. Os engenhos de Tucumán responderam por 66,5% da produção.

"O Brasil produz 15 vezes a produção da Argentina e o crescimento exponencial que terá nos próximos dez anos será muito maior. Sem a barreira, a atividade açucareira na Argentina desaparece", afirma Patricio Buffo, dono da Cia. Agraria San José, uma fazenda de mil hectares que produz 20 mil toneladas de açúcar por safra. Buffo é um dos que estão analisando entrar no etanol.

Na semana passada, houve o primeiro grande seminário do país para discutir o tema, com a participação de produtores de cana e donos de engenho, em San Miguel de Tucumán. O evento foi organizado pela Fundação para o Desenvolvimento, mantida por Jorge Rocchia Ferro.

Ninguém acredita que o mercado será aberto no curto prazo, mas todos os principais analistas da área de biocombustíveis que passaram pela capital tucumana para o seminário dizem que, de alguma forma, o assunto deverá ser tratado. "O setor açucareiro da Argentina ainda não decidiu o papel que desempenhará frente a este novo paradigma energético", reconhece Claudio Molina, diretor-executivo da Associação Argentina de Biocombustíveis.

Segundo Molina, considerado um dos maiores especialistas do país no tema, a Argentina tem vantagens comparativas para a produção de biocombustíveis devido a seus excedentes exportáveis de grãos (soja, milho, sorgo, girassol), óleos e subprodutos. Para ele, o país deve apoiar a iniciativa da Comissão Interamericana de Etanol - presidida por Jeb Bush, irmão de George e ex-governador da Flórida-, que visa promover o livre comércio do produto nas Américas, mas é preciso separar a indústria açucareira da alcooleira, ainda que uma esteja baseada na outra. Além da impraticável disputa com a competitividade brasileira, afirma Molina, "há limitações para estender significativamente a superfície plantada com cana na Argentina".

Para Jorge Rocchia Ferro, da Balcanes, a Argentina está dando os primeiros passos para o que será sua política de biocombustíveis no futuro. E se diz cético. "Há coisas que não estão claras. Fala-se muito que se pode produzir [etanol] de milho, mas não há projetos. Os únicos, na prática, são de álcool de cana. Há muitos atores, mas sem capacidade produtora para participar da conversão".

De acordo com ele, como a Argentina não produz etanol carburante, seriam necessários altos investimentos para criar plantas desidratadoras. "O que há é muita publicidade e marketing, não há uma realidade concreta. Os produtores querem fazer qualquer produto que seja rentável, mas os engenhos não estão preparados".

Uma fonte da chancelaria brasileira confirma que "a visão é de que o mercado de açúcar poderia ser liberado pensando no álcool". A posição do governo brasileiro é de que o álcool pode ser a plataforma para a liberalização do açúcar e que poderia participar do processo no principal sócio do Mercosul compartilhando tecnologia.

E completa: "Até agora não se falava nesse assunto porque antes os argentinos não tinham problema com petróleo. Com o crescimento da economia e a possibilidade de faltar petróleo, as empresas que defendiam o fechamento agora acham que podem ganhar competitividade. A mentalidade do setor privado está mudando", diz a fonte, que preferiu não se identificar para não causar problemas com o vizinho. O açúcar é o produto mais protegido do mundo. Há 134 países que produzem, não existe livre comércio e a comercialização normalmente se dá por cotas.