Título: Demorou, mas o mercado acabou falando mais alto
Autor: Félix, Jorge
Fonte: Valor Econômico, 08/03/2007, EU & Investimentos, p. D6

Em 2006, o PIB brasileiro cresceu 2,9%. O consumo das famílias aumentou pelo terceiro ano consecutivo. Subiu 3,8%. Se a expansão da economia é pequena, imagine-se o que seria sem o crescimento do mercado interno. O consumo, na teoria, pesa cerca 70% no cálculo clássico da riqueza nacional (contra um peso de 20% para os gastos públicos e pouco mais de 10% para os investimentos privados). Diante de tamanha importância, estudos sobre o consumo são sempre uma colaboração bem-vinda, sobretudo, porque o Brasil carece de bibliografia na área.

Essa deficiência não é de estranhar. As elites retardaram ao máximo a formação de um mercado consumidor. O Brasil foi o último país a abolir a escravidão. Sem cidadania, é impossível forjar um consumidor livre e altivo. Logo, ao substituir a escravidão pela desigualdade social, o Brasil ainda fica devendo nesta importante relação entre aquele que compra e aquele que vende. No entanto, desde que os índios aceitaram dos portugueses quinqui-lharias e as trocaram por terras - constituindo-se, assim, nos primeiros consumidores brasileiros - houve uma grande evolução nesse relacionamento.

Contar essa evolução foi o objetivo do jornalista Alexandre Volpi no livro "A História do Consumo no Brasil - do Mercantilismo à Era do Foco no Cliente". Se resistiu à colonização, lutou e reagiu, o índio também se mostrou complacente diante das tranqueiras que lhes eram oferecidas. A troca foi bastante injusta. Embora ainda não possa ser definida como troca ou circulação de mercadoria na concepção marxista dos termos, que estabeleceria a relação de consumo, Volpi parte desse ato cheio de simbolismo para desenhar seu relato da fase mercantilista.

Se houve demora em construir um mercado consumidor, a história do Brasil explica boa parte dos motivos. O maior deles, amplamente debatido pelos historiadores, foi estabelecer nestas terras uma colônia de exploração - em vez de povoamento, como na América espanhola. Até o século XIX, os portugueses não haviam esboçado a menor preocupação em estabelecer aqui um mercado. Trataram de extrair rapidamente os recursos naturais, como o ouro e o pau-brasil, e reproduzir uma sociedade medieval em franco declínio na Europa, sociedade esta erguida sobre a relação dominados e dominadores e sobre o escravo como mercadoria. Ou seja, um ambiente hostil ao surgimento do comércio.

Volpi reproduz a história econômica brasileira - quase sempre recorrendo a Celso Furtado. O autor descreve como a sociedade de consumo brasileira se formou alicerçada sobre problemas da economia contemporânea: inflação, juros altos, carga tributária, contrabando, concentração de renda e deformações no mercado de trabalho. O Brasil insistiu em manter-se na contramão do mundo. Enquanto aqui permaneciam a escravidão e o enriquecimento dos senhores "feudais", a Europa e os Estados Unidos abriam diálogo com a industrialização. A massa brasileira era pobre e com pouquíssimos artigos para consumir. As distâncias dificultavam a circulação de mercadorias. Segundo o professor Márcio Scalercio, da PUC-RJ, citado por Volpi, "o herói da história do consumo no Brasil é o boi".

O livro acompanha a existência do consumidor brasileiro desde a Colônia até a República. Nesta, mostra como o consumidor se fortaleceu depois da ditadura Vargas (1930-1945), com o impulso da industrialização. Havia, porém, um empecilho: o grande número de analfabetos. Distantes dos salários razoáveis, da carteira assinada, quase sempre em regime de quase escravidão em casas de família, esses meio-cidadãos estavam também distantes do consumo. E o incipiente mercado publicitário (mesmo depois da televisão) encontrava barreiras para atraí-los e criar necessidades constantes para incitá-los à compra. Volpi também recorre ao "homem cordial brasileiro" definido por Sérgio Buarque de Holanda, para se entender uma vantagem do comerciante brasileiro, a simpatia.

O grande feito de "A História do Consumo no Brasil" não está em trazer algo de novo ou revelador, mas em passear pela formação do mercado interno brasileiro arrumando as idéias e compilando quantidade significativa de visões e dados históricos espalhados - ou perdidos - em extensa bibliografia econômica, sociológica, de marketing ou de administração de empresas. Neste mundo de informação em excesso, organizar o caos pode ser um mérito.

"O livro pretende falar das relações de consumo no país. Há pouca bibliografia sobre isso. A gente lê uma informação aqui, outra ali. Faltava um título que contasse tudo de forma linear", afirma Volpi. No livro, resultado de um ano de pesquisa, o autor procura explicar as razões do retardamento da formação do consumidor brasileiro, mas sobretudo o crescimento do seu poder e suas características no século XXI.

Volpi conta a evolução do consumo, desde as vendas com cadernetas de fiado até o surgimento de um comércio maduro, as grandes redes, a importância da publicidade, cases famosos e o aparecimento do Shopping Iguatemi, de São Paulo, o primeiro do país, em 1966. Mas também disseca a difícil relação das empresas com o consumidor. "A história do Brasil, com escravidão, ditaduras, inflação e vários fatores que impediam o consumidor de ter total domínio sobre a escolha no momento da compra, forjaram um consumidor sem plenos poderes. Isso começa a mudar no período de estabilização econômica pós-real. É muito recente", analisa. Segundo Volpi, que conta como se deu a criação do primeiro Procon e do Código de Defesa do Consumidor, as empresas sempre colocaram a marca como prioridade. "Se é Bayer é bom', por exemplo, é um comercial ícone dessa fase", lembra. "Agora, o foco é dirigido para o cliente."

Segundo Volpi, logo após a criação do Código de Defesa do Consumidor, as empresas, obrigadas a criar serviços de atendimento, enxergaram nessa exigência apenas um aumento de custos operacionais. Hoje é diferente. "Um baixo número de ligações para o serviço de atendimento ao consumidor é causa de preocupação em qualquer empresa", observa Volpi.

O canal direto de relacionamento é a atitude de maior deferência da empresa para com o cliente. "É quando a empresa percebe o valor do cliente, que ele pode interferir e é preciso que interfira. Hoje vivemos essa fase da história", diz. O consumidor - no ambiente democrático e de economia estável - cobra, exige e até mesmo quer saber como as empresas lidam com suas responsabilidades sociais, para tomar suas decisões de compra. Volpi cita como exemplos dessa fase os comerciais que afirmam que a empresa ou o banco são "de fulano, de sicrano"[o consumidor]. Demorou, mas o consumidor brasileiro passou de menosprezado a homenageado.