Título: Empréstimos de risco e as vítimas
Autor: Lewis, Michael
Fonte: Valor Econômico, 17/04/2007, Opinião, p. A13

O enredo do mais recente desastre financeiro dos EUA ficou claro: o presidente Bill Clinton afrouxou as normas de concessão de empréstimos para estimular as pessoas ricas que administram o mercado de hipotecas a apoiarem pessoas pobres com baixas classificações de crédito. Então, essas terríveis pessoas ricas - esses agiotas insensíveis - se lançaram ao trabalho, explorando os pobres.

Primeiro, eles persuadiram os pobres a tomar emprestado um dinheiro que jamais deveriam ter tomado. Depois eles trouxeram consigo outros agiotas para embrulhar esses empréstimos na forma de títulos, que por sua vez convenceram outras pessoas ligeiramente menos pobres a comprar esses títulos. Os ricos atravessadores embolsaram os seus honorários e deixaram que os pobres tomadores de empréstimo e os ligeiramente menos pobres pagassem o pato.

O moral da história também é claro: independente de quanto o governo possa tentar ajudar os pobres, os ricos que administram os mercados financeiros encontrarão uma forma de passar a perna neles.

De qualquer forma, é assim que entendo os vários relatos com toque de escândalo do colapso do mercado de empréstimos de alto risco. Além disso, na superfície, o moral é tentador: e a história é sempre melhor, e mais fácil de redigir, quando os sujeitos ricos são os vigaristas. Mas essa interpretação dos eventos correntes dá lugar a algumas perguntas. A saber: 1) se o mercado de empréstimos hipotecários de alto risco foi uma cínica formação de quadrilha, porque tantos destes supostos membros da quadrilha acabam assumindo uma parcela tão grande do risco?

O maior colapso individual no mercado até agora foi o do New Century Financial, segunda maior instituição de crédito hipotecário de risco. Quando o New Century desabou, devia dinheiro para muitos, porém o maior credor individual, de acordo com o London Times, era o Goldman Sachs Group, seguido do Morgan Stanley, Lehman Brothers etc, etc.

De forma interessante, o décimo maior credor do New Century - mais uma vez, de acordo com o Times - era outra instituição financeira de hipotecas de alto risco, a Countrywide Financial (o Barclays, com US$ 1 bilhão em créditos com atraso, figurava apenas no 15º posto na lista, o que dá uma noção dos valores envolvidos). Isso posto, podemos imaginar que será apenas uma questão de tempo nos inteirarmos de um fundo de hedge à beira do colapso, como resultado dos seus investimentos em hipotecas de alto risco.

2) Por que o personagem mais preocupado e supostamente melhor informado do mundo, o investidor americano, insiste em bancar o bobo?

Surpreendentemente, na esteira da expansão e recessão das empresas de internet, um número significativo de investidores americanos não consegue se questionar por que está recebendo retornos fantásticos sobre os seus investimentos. Ao serem pagos seis vezes mais que a taxa isenta de risco sobre títulos e bônus de uma firma de crédito hipotecário de alto risco chamada American Business Financial Services (um nome que representa um sinal das adversidades por vir, se é que já houve um nome assim), eles não se perguntam por que será que seus investimentos rendem retornos tão espetaculares. Pelo contrário, quando a American Business Financial Services desaba, eles movem ações contra os bancos de investimento de Wall Street que lhes venderam os títulos.

-------------------------------------------------------------------------------- Mesmo com o empenho do governo em ajudar os pobres, os ricos que administram os mercados sempre encontrarão uma forma de passar a perna --------------------------------------------------------------------------------

Depois eles partem para a mídia. Da Bloomberg News soubemos a respeito da triste história de um pequeno investidor chamado Buck Meyer, que perdeu US$ 300 mil quando a American Business Financial Services desmoronou. O homem tem dois filhos! Ele pretendia usar as taxas de juros incrivelmente altas que ganhava com os seus títulos do American Business Financial Services para quitar a hipoteca da sua nova casa em Chattanooga, no Tennessee! Como é possível que eles não conseguiram saldar as suas dívidas?

Ninguém sugere que Buck Meyer, de fato, tenha dissipado as suas economias através de especulação - que, da mesma forma, ele poderia ter aproveitado a oferta especial de ganhar um quarto de hotel grátis e voado para Las Vegas, se dirigido a uma mesa de roleta, despachado as economias da sua vida e depois processado o cassino por perder o seu dinheiro. Nesse caso, o apostador de Las Vegas não pode esperar que os jornalistas e jurados levem o seu caso a sério.

Isso, por sua vez, coloca outra questão: será que o conhecimento de que poderia contar com a simpatia de jornalistas e jurados teria incentivado Buck Meyer a apostar as suas economias? Ainda que Buck Meyer não tivesse cogitado conscientemente que "se eles não devolverem o meu dinheiro, simplesmente os acionarei na justiça", será que ele não estava subconscientemente a par de que esses títulos lucrativos, embora arriscados, vinham acompanhados de uma vaga apólice previdenciária? Poderiam jornalistas e jurados, portanto, ser parcialmente responsabilizados por suas perdas?

3) Por que nesse novo drama é tão fácil imaginar tomadores de empréstimo num papel diferente, além daquele no qual estão atualmente escalados, de vítimas?

Mudar-se nunca é agradável ou barato, mas este é o principal custo para o inadimplente em empréstimos de alto risco: ele devolve a casa, cujo valor supostamente disparou às alturas, às pessoas que emprestaram o dinheiro para adquiri-la, e vai embora. Ele aluga. (Sensatamente!) Na verdade, ele adquiriu uma opção de compra muito barata no mercado habitacional dos EUA. Se por um lado ele esperou para ver se a sua opção de compra o tornaria mais rico, por outro ele morava numa casa muito mais bonita do que poderia ter e provavelmente se perguntava por que as pessoas ricas se tornaram tão imprudentemente generosas. Seu comportamento foi irresponsável, porém os mercados o deixaram agir assim e, portanto, é difícil culpá-lo por ter se metido em especulação.

Serei o único a perguntar como uma pessoa que toma emprestado um dinheiro que não pode restituir, compra uma casa que não poderia ter e depois dá um chapéu nos seus credores, ainda tem permissão de bancar o papel de vítima?

Uma vítima mais verossímil, imagino, é a pessoa com uma baixa avaliação de crédito, porém com uma forte determinação, que poderia se beneficiar de um empréstimo hipotecário de alto risco - e que agora não pode recebê-lo porque o mercado está apavorado com a sua sombra.