Título: Orçamento e incerteza jurídica
Autor: Domingues , José Marcos
Fonte: Valor Econômico, 10/01/2013, Opinião, p. A10

Mais importante lei votada anualmente, o Orçamento deveria ordenar (não apenas autorizar) a despesa, pois à carga tributária obrigatória corresponde o gasto justo e necessário para prover às políticas públicas, tudo objeto de lei. No estado democrático de direito não há lugar para propostas irresponsáveis, quer na iniciativa do executivo, quer nas emendas parlamentares (novas velhas caudas orçamentárias).

Então, o represamento ou contingenciamento de verbas no Brasil traz o debate acerca da legitimidade do Judiciário para fazer cumprir a Constituição (art. 102), também pela via do controle jurídico do orçamento, que não tem sido ensejado aos Tribunais de Contas, malgrado o mandato do art. 70 da Carta Magna. A conexão íntima entre tributo e despesa se intensifica no caso das receitas tributárias legitimadas em função de gastos específicos. Tributação e orçamento são vertentes imprescindíveis da mesma ordem jurídico-financeira em nome da proteção dos direitos fundamentais da sociedade. A repartição equitativa do gasto público decorre entre nós da conjugação do objetivo de construção de uma sociedade justa e solidária (art. 3º, I) com a determinação de graduação da carga tributária conforme a capacidade econômica da cidadania (art. 145, § 1º). E a constituição manda que a administração pública obedeça à eficiência e à moralidade, entre outros princípios (art. 37).

Com a insinceridade orçamentária e contábil vem à luz a caótica falta de planejamento público no país

De importância vital, o orçamento aloca recursos dos contribuintes para concretizar valores e vetores da atuação estatal, refletindo prioridades de ação, certo que o planejamento é determinante para o Estado e indicativo para o setor privado (art. 174). Como pode este planejar-se, tomar decisões, realizar escolhas racionais em busca de eficiência, se o orçamento público é falacioso? Se o Congresso não o aprova no ano anterior? Se o Executivo pretende por medida provisória de duvidosa validade suplementar o orçamento às vésperas do Ano Novo? E se artifícios orçamentários, com transferências entre empresas estatais e o Tesouro, são empregados para maquiar as contas públicas à grega?

Seria isso criatividade contábil? As opções decididas pelos poderes competentes do Estado estão na lei para serem cumpridas. O ajuste entre o Executivo e o Legislativo é sério, jurídico, legal e não pode ser inflado nem comportar contingenciamentos; se ambos se compõem para iludir o contribuinte, então cabe ao Judiciário intervir quando provocado pela cidadania desatendida. O mal das finanças públicas brasileiras não é apenas de gestão, mas sobretudo de desrespeito ao direito.

A Constituição de 1988 foi além de suas antecessoras ao garantir recursos para políticas públicas por ela institucionalizadas. Assim, o empréstimo compulsório é vinculado à despesa que o fundamentar (art. 148) e as contribuições se constituem em instrumento de atuação da União nas áreas social, econômica e profissional (art. 149). A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas (art. 196) financiadas entre outras pelas contribuições à seguridade social (arts. 195 e 198). O mesmo se diga da política constitucional para a educação (art. 210): a União empregará no mínimo 18%, e Estados, Distrito Federal e municípios, 25%, de suas arrecadações na manutenção e desenvolvimento do ensino (art. 212). Ora, saúde e educação são pré-condições do desenvolvimento social e econômico, mas são o que mais falta ao país, que se reprimariza, desindustrializa, importa gasolina, bens de produção e tecnologia externa até para operar seus ineficientes aeroportos.

Desde os julgamentos da Ação Direta de Inconstitucionalidade-Adin 2925 (contingenciamento da Cide-combustíveis) e na Medida Cautelar na Adin 4048 (fiscalização da constitucionalidade das leis, inclusive orçamentárias) o STF procede a fiscalização concentrada do orçamento, e na Suspensão de Tutela Antecipada 175 foram mantidas decisões pelo fornecimento de medicamentos e tratamentos não oferecidos pelo SUS, reposicionando o controle judicial de políticas públicas, com potenciais consequências no plano tributário, já que é o contribuinte que as sustenta.

O orçamento é uma lei plena que determina (e não apenas autoriza) o gasto público. O Legislativo não pode fugir ao dever de votar tempestivamente um orçamento sério. Nesse sentido, o orçamento seria impositivo e não meramente autorizativo. O contingenciamento unilateral de verbas pelo governo funciona como desvio de gasto e atrai a legitimidade do Judiciário para seu controle jurídico, garantindo respeito ao Legislativo e mediando a justiça da Tributação e a garantia do cumprimento da finalidade constitucional da despesa, que é servir à população, máxime quando se vê o estado de nossas escolas, estradas e hospitais, para não falar do risco habitacional e de mobilidade da maioria dos brasileiros, que pagam a conta.

Impõe-se respeito ao objetivo fundamental de construção de uma sociedade soberana, justa e solidária, através de políticas públicas probas, com eficiência e moralidade, sem o que não há repartição equitativa dos recursos públicos. Isso tem levado a estigmas degradantes como orçamento-ficção e carga tributária de 1º Mundo com serviços públicos de 3º Mundo. Depois, que se dê o reencontro da governança com a cidadania fiscal, destinatária da atividade financeira do Estado. E não se percam os ideais do Constituinte na inconstitucionalidade por omissão ou nos desvios orçamentários, que, infiel e informalmente, pretendem mudar, e para pior, a Carta da República. Com a insinceridade orçamentária e contábil vêm à luz a caótica falta de planejamento público no país, o desrespeito sub-reptício à lei e surge a incerteza jurídica tão necessária ao que é mais urgente: o investimento que garanta o desenvolvimento. Nossa bandeira é sábia: Ordem e Progresso.

José Marcos Domingues é professor titular de direito financeiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e professor adjunto da Universidade Católica de Petrópolis.