Título: Ditadura da burocracia
Autor: Abramo, Claudio Weber
Fonte: Valor Econômico, 19/04/2007, Opinião, p. A12

O Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) anunciado pelo presidente da República há algumas semanas inclui uma proposta de alteração da lei de licitações e contratos (nº 8666/93). Essa lei regulamenta o inciso 21 do artigo 37 da Constituição, e sua aplicação é obrigatória para todos os poderes e esferas. Emendas que lhe sejam introduzidas têm vasto impacto econômico.

Um dispositivo em particular, presente na proposta do governo, causa preocupação. Trata-se de diminuir os prazos que as empresas concorrentes têm de interpor recursos a decisões da administração. Eles são hoje de cinco dias após cada etapa (dez em um caso específico). Na proposta, seriam diminuídos para dois (respectivamente, cinco).

Conforme diversos ministros e parlamentares ligados ao governo explicitaram publicamente quando do lançamento do PAC, a medida nada tem a ver com prazos. Não são alguns poucos dias que farão diferença na eficiência das compras. O que se pretende é dificultar a interposição de recursos de empresas interessadas.

Os efeitos da medida, se aprovada no Congresso, seriam muito deletérios, a começar da idéia de que se poderia ou se deveria dificultar o direito de qualquer um de reclamar. Na prática, a redução de prazo significará que, numa licitação minimamente complexa, não haverá tempo hábil para analisar as decisões administrativas, quanto mais para decidir se são contestáveis.

Isso sem falar nas dificuldades logísticas implicadas. Numa licitação que ocorre num Estado, os responsáveis de uma empresa concorrente sediada em outro Estado não terão nenhuma chance de examinar as decisões, discuti-las e instruir seus representantes locais.

Com isso, um primeiro efeito direto da mudança seria o fechamento automático dos mercados regionais, com resultante elevação de preços e evidente perda de eficiência econômica. O contrário, portanto, do pretendido pelo PAC.

Impedir que empresas contestem administrativamente decisões dos agentes públicos terá a conseqüência de frustrar posteriores contestações judiciais. Embora, a rigor, não seja necessário para o recebimento de um mandado de segurança que o reclamante apresente provas de ter tentado antes a via administrativa, esse é o entendimento de muitos juízes. Não existindo interposição anterior de recurso administrativo, muitos magistrados simplesmente rejeitam o recurso judicial.

-------------------------------------------------------------------------------- Dificultar a capacidade de contestação dos participantes não aumenta eficiência das compras do governo --------------------------------------------------------------------------------

Há em muitos órgãos públicos uma corrente que considera a reclamação um entrave. Acham os defensores dessa linha que os concorrentes em processos de licitação pública deveriam baixar a cabeça e conformar-se com as decisões administrativas, como se estas fossem de algum modo sagradas.

Há uma perturbadora quantidade de agentes públicos que imagina que a motivação de empresas entrarem na Justiça contra atos administrativos seria atrapalhar o governo e os competidores. Tal corrente revela preocupante ignorância a respeito da razão de ser de empresas. Fora o fato de que recursos "para atrapalhar" são facilmente identificáveis e puníveis (pois configuram litigância de má-fé), empresas não existem para gastar dinheiro com advogados nem para hostilizar seus clientes. Se uma empresa entra na Justiça contra uma decisão administrativa do Estado, é porque pretende defender direitos que considera legítimos.

A doutrina esposada pelo governo quando da elaboração da emenda do PAC à lei de licitações e contratos vai na direção contrária da eficiência dos mercados. Os melhores fiscais do funcionamento do mercado não são agentes públicos ou auditores, mas os participantes desses mercados. São eles que, ao identificarem condições restritivas numa licitação, recorrem à administração e à Justiça para defender os seus direitos. A prerrogativa de contestar decisões administrativas é essencial para o bom funcionamento dos mercados públicos.

Trata-se de um equívoco grave do governo imaginar que conseguirá aumentar a eficiência das compras do Estado pelo expediente de dificultar a capacidade de contestação dos participantes. O resultado será a instituição de uma verdadeira ditadura da burocracia, com menos concorrência, menos competitividade e preços mais elevados.

É evidente ainda que a medida, se vier a ser aprovada pelo Congresso Nacional, representará um estímulo adicional à corrupção. A única defesa à disposição de empresas prejudicadas numa licitação é o recurso administrativo e judicial. Se estes são dificultados, os agentes desonestos terão mais liberdade para direcionar os certames para empresas "amigas" contra o pagamento de propinas.

Um importante aspecto complementar do direito de contestação, e que costuma ser muito mal entendido, é que funciona como auxiliar da própria administração. Direcionamentos que sejam introduzidos nas condições de editais de licitação por agentes públicos mal-intencionados serão muito mais facilmente identificados pelas empresas participantes do que pelas instâncias administrativas superiores. A interposição de um recurso representa um alerta a essas instâncias, as quais, a partir daí, podem ter a sua atenção despertada quanto a aspectos que passaram despercebidos.

Nunca é demais frisar que o melhor combate à corrupção se faz pela prevenção. A fiscalização dos editais de licitação pelos participantes dos mercados públicos é peça crucial na prevenção da corrupção nas contratações do Estado. Tal fiscalização se exprime pelo ato de contestar decisões. A dificultação deliberada desse ato, como é a intenção da emenda proposta pelo governo, terá como resultado a redução da capacidade do governo de prevenir a corrupção.

Claudio Weber Abramo é diretor executivo da Transparência Brasil ( www.transparencia.org.br ), organização dedicada ao combate à corrupção no país.