Título: Justiça usa critério dúbio e tira magistrados da prisão
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Fonte: Valor Econômico, 25/04/2007, Opinião, p. A22

A Justiça está lidando com um "distanciamento crítico" indesculpável os seus que foram flagrados pelas operações Têmis (que investiga a venda de sentenças judiciais) e Hurricane (que é apenas a extensão da primeira aos porões do jogo do bicho, do bingo e das máquinas caça-níqueis). A pretexto de que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) define que prisões devem ser decretadas apenas em "situações inevitáveis", o tribunal determinou a soltura dos três magistrados e do procurador presos pela Polícia Federal (PF) no fim de semana. Sequer passou pelas masmorras da PF em Brasília um dos principais implicados, o ministro do Superior Tribunal de Justiça Paulo Medina. Os outros 21 presos - entre bicheiros, empresários e policiais -, que não têm direito a foro privilegiado e serão julgados em primeira instância, deverão ir para o presídio de segurança máxima de Campo Grande (MS).

Nessa fase do inquérito policial, as prisões têm caráter preventivo, isto é, os pedidos de prisão apenas são autorizados pela Justiça quando existe perigo iminente de que a liberdade dos envolvidos possa resultar em destruição de provas ou em coação de testemunhas. Nesse caso, como os juízes foram soltos, pressupõe-se que o STF considere que eles não têm poder nem de destruir provas nem de coagir testemunhas, e os demais tenham. Fez-se, assim, uma diferenciação entre juízes que vendem sentenças - não apenas relativas a jogos de azar, mas também de causas tributárias - e os demais que com eles formaram uma quadrilha. Nesse caso, as pessoas que se juntaram para cometer um mesmo delito (afinal, se alguém comprou uma sentença foi porque o outro se dispôs a vendê-la) são menos perigosas se fazem parte da corporação da Justiça.

Assim, a proteção a juízes criou uma constrangedora situação: qualquer um dos integrantes do Judiciário, presos e soltos ou sob investigação, têm poder pleno de assumir suas funções. Estão aptas, portanto, a julgar e emitir sentenças. O desembargador Nery Costa Jr, por exemplo, poderia ser encontrado no TRF-3 anteontem, trabalhando normalmente. O desembargador Roberto Luiz Haddad, que está em maus lençóis nas investigações, manteve as suas atividades rotineiras - depois de, beneficiado por um vazamento da operação da PF, ter esvaziado uma garagem com os carros antigos que coleciona. Esses juízes só poderão ser afastados de seus cargos se a direção do TRF-3 instaurar procedimento administrativo para averiguar suas condutas e os afastar preventivamente.

Os dois escândalos que estouraram agora no colo do Judiciário - depois que o do mensalão explodiu o Legislativo - remetem a uma profunda reflexão sobre o foro privilegiado. Tanto no caso do Congresso, como no caso do Judiciário, o instituto teve o dom de dividir criminosos que cometem o mesmo crime em duas castas. O próprio STF reconhece que as chances de vir a julgar um processo criminal, que depende de investigações e pessoal especializado que ele não tem, são mínimas. Então, a parte que lhe cabe desse julgamento - os juízes - podem escapar dessa. Os demais, pode até demorar - e a Justiça brasileira efetivamente é muito morosa -, mas um dia serão julgados.

A outra questão a que o escândalo remete é o da simples existência dos bingos num país onde os jogos de azar, em princípio, são proibidos. Foi aí que prosperou a indústria de liminares. No início do governo, após o escândalo Waldomiro Diniz, o governo enviou ao Congresso uma medida provisória proibindo os bingos. O Senado aprovou-a; a Câmara rejeitou-a - e, com isso, os bingos passaram a viver de liminares, ou de eventuais leis estaduais. No dia 2 de maio, o STF define a primeira súmula vinculante, cujo tema é exatamente este: vai definir que leis estaduais não podem tratar de funcionamento de bingos. É uma torneira a menos para a indústria de liminares. A outra pode ser a disposição do governo, anunciada pela ministra Dilma Rousseff, de regulamentação clara dos jogos de azar. Bingos e caça-níqueis proliferaram na omissão legal sobre o assunto. A lei precisa dizer, claramente, o que é crime e o que não é nesse assunto. O vácuo não apenas abre espaço para as piores práticas, como faz delas empresas privilegiadas. Bingo não paga imposto. Nem caça-níquel.