Título: Um novo apagão no horizonte: a crise do gás natural
Autor: Pires, Adriano e Schechtman, Rafael
Fonte: Valor Econômico, 25/04/2007, Opinião, p. A22

A crise do setor aéreo resultou da falta de planejamento e na adoção de medidas intempestivas do governo e, pelo que tudo indica, a situação pode se repetir no setor de gás natural. Indícios de que um apagão de gás se avizinha surgem de medidas anunciadas pelo governo e pela Petrobras. Recentemente, o ministro de Minas e Energia (MME), revelou que o ministério trabalha para apresentar um plano de contingência para o setor de gás natural. Preocupado com os desdobramentos da escassez do gás para o setor elétrico, o ministro ressaltou que o objetivo principal do plano de contingência é garantir às usinas térmicas prioridade no suprimento de gás. Na prática, isto quer dizer que, se faltar gás para atender todo o mercado, os contratos de fornecimento da Petrobras com as distribuidoras estaduais de gás e destas com seus clientes poderão ser rasgados. Os maiores prejudicados serão as distribuidoras, os consumidores industriais e os usuários de GNV.

Diante da crise de abastecimento de gás natural que se avizinha, a Petrobras começa a adotar práticas típicas de um produtor que exerce posição dominante de mercado, sem sofrer qualquer questionamento das agências reguladoras ou dos órgãos de defesa da concorrência. A empresa tem dificultado a renovação dos contratos atuais de fornecimento das distribuidoras estaduais e não garante a entrega de gás às termelétricas que não possuam contratos, mesmo sendo questionada pelo MME e pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) quanto a este procedimento. Como não expandiu a oferta de gás nacional e a malha de transporte para atender o mercado, tenta conter a demanda, no curto prazo, pelo aumento do preço do gás nacional. Já a partir de maio, o gás nacional fica em torno de 20% mais caro. O curioso é que o aumento se dá justamente quando o gás boliviano fica mais barato, devido à queda no preço do petróleo no mercado internacional.

Na realidade, a política de preços da Petrobras para o gás natural nacional é uma caixa preta, assim como a dos derivados de petróleo. De fato, com liberdade de estabelecer os preços do petróleo, de seus derivados e do gás natural, dada pela Lei 9478/97 desde janeiro de 2002, a Petrobras transformou-se de um monopólio regulado em um desregulado.

A crise no abastecimento de gás mais uma vez mostra a incapacidade de planejamento do governo e da Petrobras. Em 2003, sobrava gás no país, em decorrência da não concretização das metas do Programa Prioritário de Termoeletricidade (PPT) elaborado no governo anterior, que previam a construção 40 usinas termelétricas a gás. Em conseqüência, a Petrobras pagava à Bolívia por um gás que o país não consumia. Para resolver o problema de sobra de gás, a empresa lançou em 2003 o Programa de Massificação do Uso de Gás, para incrementar o seu consumo no país. Acreditando no programa, as distribuidoras estaduais de gás canalizado expandiram suas redes, a indústria comprou ou alterou seus equipamentos para utilizarem o gás em substituição a combustíveis mais poluentes e proprietários de automóveis, especialmente os taxistas, converteram seus veículos.

-------------------------------------------------------------------------------- Mais uma vez, a conta da falta de planejamento será paga por aqueles que investiram acreditando no progresso mercado de gás --------------------------------------------------------------------------------

O sucesso do Programa de Massificação do Uso de Gás baseou-se na oferta do gás boliviano e em uma política de preços incorreta. Entre 2003 e 2005, na esteira da onda populista do governo Lula, os preços tanto do gás nacional como do importado pouco aumentaram, ficando completamente desvinculados dos preços dos combustíveis substitutos. Com o incentivo econômico, as distribuidoras de gás investiram maciçamente na expansão de suas redes e o consumo de gás cresceu a média anual de 12%.

Do lado da oferta, a Petrobras pouco investiu no aumento da produção doméstica de gás e da sua malha de transporte e, com a chegada de Evo Morales à Presidência da Bolívia, o Brasil tornou-se refém do país vizinho. A festa acabou e o país passou de uma situação de excesso para um déficit na oferta de gás. O pior é que esse déficit de gás ocorre num momento em que também existe um gargalo na oferta de energia elétrica.

Após arrombada a porta, a Petrobras lançou o Plangás, o Plano de Antecipação da Produção de Gás, e o governo federal, adepto a criação de siglas, o incluiu no Plano de Aceleração do Crescimento. O Plangás prevê o aumento da produção doméstica diária de gás dos atuais 27,5 milhões de metros cúbicos para 71 milhões de metros cúbicos até 2010. Apesar de o plano ser tecnicamente viável sob o ponto de vista dos volumes a serem produzidos, duvida-se que possa ser concretizado no prazo pretendido. Outra solução proposta pela empresa para crise é a implantação, até 2009, de duas plantas para regaseificar um volume diário de 20 milhões de metros cúbicos de gás natural liquefeito importado. Este é um projeto que vem sendo discutido na Petrobras desde a década de 80 e havia sido descartado no primeiro mandado deste governo.

Um plano de contingência presta-se essencialmente ao estabelecimento de medidas para atender a uma situação de emergência, que não se sabe se pode acontecer. Por sua vez, o plano proposto pelo governo, de desviar parte do gás de outros consumidores para as térmicas, visa enfrentar uma crise decorrente da falta de planejamento e anunciada por inúmeros analistas. A conclusão que se tira é que, mais uma vez, a conta da falta de planejamento será paga por aqueles que investiram acreditando no crescimento do mercado de gás, a preços competitivos, e que agora serão triplamente punidos: contratos rasgados, preços crescentes e um possível apagão no setor.

Adriano Pires e Rafael Schechtman são diretores do Centro Brasileiro de Infra Estrutura (CBIE).