Título: O jogo econômico e a instabilidade legal
Autor: Aragão, Paulo Cezar
Fonte: Valor Econômico, 25/04/2007, Legislação & Tributos, p. E1

Nosso país vive um momento delicado no seu desenvolvimento econômico. De um lado, um crescimento sem precedentes em diversas áreas, com reflexos positivos sobre a balança cambial e o mercado de capitais; de outro, um iminente risco de um "apagão logístico" de grandes proporções. Busca-se um crescimento superior às taxas medíocres da última década, essencial, entre outras razões, para a redução das desigualdades sociais que assolam o Brasil de longa data e que nenhum sistema assistencialista resolverá de forma permanente. Ao mesmo tempo, existe presente a consciência de que um aumento efetivo da taxa de crescimento se afigura incompatível com a nossa precária estrutura logística.

Neste contexto, e com a carência de recursos públicos para os investimentos necessários à eliminação dos pontos de estrangulamento (e não é possível esquecer o recente apagão energético), assume fundamental importância o investimento privado, feito de forma isolada, ou através das parcerias com o setor público, na forma da Lei nº 11.079, de 2004, que disciplinou as parcerias público-privadas (PPPs).

A atuação do Estado na área econômica, seja como regulador, seja em joint-ventures com a iniciativa privada, pressupõe um requisito fundamental, às vezes esquecido: a estabilidade das regras destinadas a conferir segurança e previsibilidade ao investimento privado. Cabe lembrar o exemplo do regime do capital estrangeiro: mesmo nos tempos difíceis da balança cambial, sempre se buscou preservar a integridade da Lei nº 4.131, de 1962, que até hoje regula a matéria.

Assim, com um marco regulatório estável, independente da qualidade das regras tributárias e administrativas, tudo se transforma em uma questão de cálculo de retorno, que se resolve em um ponto de equilíbrio, como no terreno das concessões de serviço público, entre o serviço adequado exigido pelo artigo 175 da Constituição Federal e o retorno adequado esperado pelo investidor.

No campo das concessões, todavia, nem sempre há equilíbrio. É o que ocorre, por exemplo, quando a busca de modicidade tarifária se transforma em instabilidade tarifária e o consumidor passa a pagar, como parte do famoso Custo Brasil, uma disfarçada "apólice de seguro" contra tal instabilidade governamental, refletida nas tarifas.

O problema também se encontra presente nas associações entre as empresas privadas e as sociedades de economia mista, notadamente em relação àquelas empresas governamentais que pretendem buscar recursos no mercado. Aqui, o ponto de equilíbrio entre interesse privado e interesse público é particularmente delicado. Argumentar-se-á, talvez, que em uma associação desta natureza tanto o parceiro privado quanto o próprio acionista minoritário da companhia aberta de economia mista deveriam lembrar a regra do artigo 238 da Lei nº 6.404, de 1976, que permite ao acionista controlador orientar as atividades da companhia de modo a atender ao interesse público que justificou a sua criação.

-------------------------------------------------------------------------------- O efeito da composição indevida entre serviço e retorno é evidente: acionista escaldado tem medo de água fria --------------------------------------------------------------------------------

Não é possível, contudo, adotar-se uma leitura superficial do texto legal, notadamente em se tratando de um monumento como a Lei das Sociedades por Ações - a Lei das S.A. O poder público, quando atua como acionista controlador, tem todos os deveres e responsabilidades desta condição. Quando o Estado desvia a companhia de seu objetivo de lucro, sacrificando o interesse de seus acionistas supostamente em favor do dito interesse público, deverá "compor os prejuízos que causar aos acionistas minoritários", no dizer da exposição de motivos da lei, até mesmo em homenagem à tutela constitucional da propriedade.

E, por sinal, não se trata de negar os deveres de qualquer companhia aberta, de capital misto ou integralmente privado, nacional ou estrangeiro, com a comunidade em que atua, a que alude o artigo 116 da Lei nº 6.404. A questão é diversa, não se podendo confundir a dita comunidade em que atua especificamente a sociedade com o muito mais difuso interesse nacional. Da mesma forma, não se pretende deixar de lado a função social da companhia de economia mista prevista no artigo 173, inciso I da Constituição Federal. Certamente, porém, não atende a tal função social a sociedade cuja atuação não considera também o interesse daqueles cujo capital deve buscar periodicamente, e que se sentirão desestimulados a investir sem um prêmio de risco maior. Nesse caso, onera-se o próprio Estado, que ou suprirá os recursos faltantes, ou sacrificará a qualidade dos serviços prestados à coletividade.

Uma composição indevida do conflito entre serviço e retorno adequados, acima referido, tem um efeito evidente: o acionista "escaldado" também tem medo de água fria, ou melhor, de uma companhia de economia mista que, por qualquer razão, já antepôs o interesse dito público, ao privado. E medo, no mercado de capitais, é recompensado com uma taxa maior.

Cada vez, enfim, que, expressa ou implicitamente, a companhia de economia mista invoca o artigo 238 da Lei nº 6.404 ou o "interesse público que justificou a sua criação" em detrimento da estabilidade das suas regras de atuação e do interesse daqueles acionistas e parceiros que nelas confiaram, o efeito financeiro é muito claro e nocivo: o aumento de seu custo de capital.

Ganha-se por um lado, normalmente pouco e a curto prazo, e perde-se a longo prazo, com a redução do nível de confiabilidade da companhia de capital misto como investimento ou como parceira, em terreno supostamente pautado pelas regras da economia de mercado a que se filia a nossa Constituição.

A conclusão parece clara e, como se espera de qualquer conclusão, antecipadamente óbvia: sempre que uma companhia aberta de economia mista atua como parceira da iniciativa privada, deverá comportar-se como tal, seguindo as regras do jogo a esta aplicáveis, o que nada mais é do que o imperativo constitucional que sujeita tais companhias mistas às mesmas regras do setor privado.

Paulo Cezar Aragão é advogado em São Paulo e no Rio de Janeiro, ex-superintendente jurídico da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e diretor da Associação Brasileira de Companhias Abertas (Abrasca)

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