Título: Keynes, PAC e a falácia da composição
Autor: Paula, Luiz F. de
Fonte: Valor Econômico, 20/04/2007, Opinião, p. A16

Freqüentemente, economistas ortodoxo-liberais têm criticado o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) por ele representar um aumento da intervenção do Estado na economia ao buscar acelerar o crescimento econômico, através do aumento do investimento público e privado, em infra-estrutura econômica.

Argumenta-se que um programa desta natureza não teria sucesso em estimular o crescimento econômico, entre outros fatores, por duas razões inter-relacionadas: 1) o crescimento econômico é um processo de ampliação da capacidade produtiva, de expansão da oferta agregada, que exige o aumento dos investimentos e da produtividade, e que não se confunde com o aumento da demanda agregada; 2) como a soma das partes do produto ou da renda agregada - consumo, investimento privado, gastos do governo e exportações líquidas de bens e serviços - é igual ao todo, e supondo que a renda e o produto são dados, logo o crescimento do investimento privado só é possível com a redução nos gastos do governo, no consumo privado ou nos superávits em conta corrente. Do mesmo modo, o aumento no gasto público só seria possível com redução no consumo, no investimento privado e/ou nas exportações líquidas. Não haveria como escapar da "tirania de que a soma das partes tem que ser igual ao todo". Como resultado desta argumentação, sustenta-se que somente uma redução do Estado seria capaz de libertar verdadeiramente o espírito animal dos empresários, fazendo crescer o investimento privado necessário para um crescimento econômico maior e duradouro.

Tal análise é feita normalmente sob o manto de uma verdade absoluta, inquestionável, tal como uma Lei da Física. Argumento neste artigo que por detrás desta abordagem está uma determinada visão teórica, ou mais amplamente, uma certa visão de mundo, mas que a economia - enquanto uma ciência social e moral - tem visões diferenciadas sobre as questões relevantes, dependendo do paradigma teórico/ideológico que está sendo adotado. Em particular, sustento que os pressupostos acima, além de não poderem ser vistos como verdade absoluta, são passíveis de questionamento.

O economista inglês John Maynard Keynes questionou o teorema que diz que "a soma das partes tem que ser igual ao todo" chamando-o de "falácia da composição", entendido como um argumento errôneo do ponto de vista lógico que atribui uma característica das partes (e sua simples soma) ao todo. Esta falácia é bastante comum na economia, quando os agentes tentam transferir para o todo (a economia) aquilo que é verdadeiro para a parte (os agentes).

-------------------------------------------------------------------------------- O despertar do espírito animal do empresário pode ser estimulado por um ambiente seguro para o investimento privado --------------------------------------------------------------------------------

Um exemplo da falácia da composição é a idéia - bastante disseminada no meio econômico - de que o crescimento da poupança individual leva necessariamente a um aumento na poupança agregada. Keynes, neste particular, mostrou que a causalidade entre poupança e investimento é inversa: a decisão de investir antecede logicamente a criação da renda, e esta, por sua vez, depende das decisões autônomas de gastos dos agentes. Sendo válida a igualdade contábil entre poupança e investimento, a poupança agregada só tem sentido ex-post, depois que a renda foi criada. O que é fundamental é que as decisões de investimento sejam tomadas, pois são essas que acionam o processo multiplicador de renda na economia. Tais decisões dependem da expectativa do empresário em relação do rendimento futuro de seus ativos de capital. Tais expectativas, por sua vez, dependem daquilo que Keynes chamou de "espírito animal", que relaciona-se ao grau de confiança que o empresário tem nas suas expectativas em relação ao futuro, uma avaliação em parte subjetiva.

A falácia da composição neste caso é supor que um aumento na poupança dos agentes (microeconômica) - ou seja, da fração poupada de sua renda - levará necessariamente a um aumento na poupança agregada da economia (macroeconômica). Naquilo que ficou conhecido como "paradoxo da parcimônia", Keynes mostrou que toda tentativa de poupar mais, reduzindo o consumo, age de tal modo sobre a renda que acaba anulando a si mesma. Como no nível macroeconômico a renda é determinada pelas decisões de gastos de todos os agentes (indivíduos e firmas), se todos eles (ou parte importante deles) resolverem diminuir seus gastos de consumo para poupar mais o efeito final será uma redução na renda deles - de tal modo que a poupança agregada continuará a ser exatamente igual a antes. O equívoco neste caso é pensar a renda como dada, como algo estático.

O argumento de que a soma das partes (itens que compõem a renda) tem que ser igual ao todo (produto e renda agregada) está baseado na chamada "Lei de Say", que diz que "a oferta cria a sua própria demanda", ou seja, a produção, ao renumerar os fatores de produção, gera uma capacidade de compra exatamente suficiente para absorver a própria produção. Logo, como o único limite para a demanda real é o volume da produção, a economia tende a operar com pleno emprego dos recursos disponíveis (ou a uma certa "taxa natural de desemprego"). Contrapondo-se à Lei de Say, Keynes, Kalecki e outros economistas desenvolveram o "princípio da demanda efetiva", que diz que são as decisões autônomas de gastos dos agentes que determinam o nível de produção e emprego na economia. Nesta perspectiva teórica, fica claro que a expansão da oferta agregada depende crucialmente do aumento da demanda agregada, uma vez que as decisões de produção são feitas a partir de expectativas de vendas futuras. E somente se os empresários esperarem uma receita de vendas maior amanhã eles irão contratar mais trabalhadores. O desemprego resulta, assim, da insuficiência da demanda efetiva.

O despertar do espírito animal do empresário pode ser estimulado por políticas econômicas que criem um ambiente seguro para que o investimento privado se realize - uma política de juros baixo, uma política cambial que reduza a volatilidade cambial e uma política fiscal que privilegie uma expansão adequada do investimento público (Keynes deve ficar se contorcendo no seu caixão quando ouve economistas defenderem visões simplistas de que uma mera redução do Estado ocasionaria a ignição do espírito animal empresarial).

Procurei neste artigo explicitar ao leitor a minha visão de mundo da economia. Conclamo que meus colegas economistas façam o mesmo; mas, por favor, não venham com verdades absolutas.

Luiz Fernando de Paula é professor da Faculdade de Economia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e co-editor do livro "Perspectivas para a Economia Brasileira" (EdUERJ). Email: luizfpaula@terra.com.br