Título: Na internet, a farra dos caça-níqueis
Autor: Borges, André
Fonte: Valor Econômico, 20/04/2007, Empresas, p. B3
Os desdobramentos da Operação Furacão, da Polícia Federal, que investiga esquemas de vendas de sentenças judiciais para mafiosos dos jogos, chegam também ao mundo digital. Ou submundo. Assim como nos bares e lanchonetes de qualquer esquina do país, a farra dos caça-níqueis corre solta na internet.
Na rede mundial de computadores, como verificou o Valor, é possível comprar de tudo para entrar no negócio ilícito dos jogos de azar: de sistemas para manipulação dos resultados das máquinas, até pequenos componentes ou mesmo todo o equipamento. O preço médio de um caça-níquel oferecido em sites de leilões eletrônicos, como o Mercado Livre, é de R$ 1.500, e os fornecedores se comprometem a entregar em todo o país, em unidades ou lotes.
Procurado pelo Valor, o site de leilões Mercado Livre informou que, após o contato feito pela reportagem, retirou imediatamente do ar todos os produtos relacionados a caça-níqueis. Por meio de comunicado, a empresa alegou que "proíbe anúncios de produtos e serviços ilegais que firam a moral e os bons costumes". No entanto, acrescentou que, devido ao grande volume de anúncios, "não pode certificar a exclusão total e em tempo real de anúncios que firam suas regras diante à agilidade de eventuais internautas infratores".
Os leilões não estão sozinhos. Em fóruns especializados, apostilas com dicas para manipular máquinas de vários modelos são oferecidas a R$ 50. Em busca de clientes, a maioria dos vendedores não se intimida, e divulga abertamente seus telefones de contato, e-mail e endereços de mensagens curtas.
Por e-mail, a reportagem entrou em contato com um dos vendedores. A resposta chegou no dia seguinte, informando que sua empresa tem "máquinas completas a partir de R$ 1.699,99", e que faz "locações no centro da cidade, com 50% da arrecadação para cada parte", além de garantia de três meses. "Podemos entregar no centro da cidade se for mais cômodo para você", disse o vendedor.
Como muleta para se defender de eventuais acusações, a maior parte dos fornecedores procura chamar a atenção para o fato de que suas máquinas têm como alvo o uso doméstico, argumento que, teoricamente, os eximiria de qualquer responsabilidade sobre a evidente função da máquina. "De fato esse tipo de abordagem até que poderia servir de respaldo legal", avalia o advogado criminalista Alexandre Daoun, do Escritório Carvalho e Daoun Associados. "Acontece que isso não adianta, uma vez que, por lei, esses equipamentos já são proibidos no Brasil."
Proibido? "Proibido nada", diz dona Marinalva (nome fictício), proprietária de uma pequena loja equipada com dez caça-níqueis, na região oeste de São Paulo. "A gente tem as máquinas aqui há muito tempo, e hoje não dá mais pra ficar sem elas."
Dona Marinalva explica o por quê. Há mais de 15 anos, ela vive de fazer o tradicional jogo do bicho, nas suas mais variadas versões e cores. Acontece que a tecnologia começou a jogar contra os "negócios", diz ela. "Antes eu fazia umas 200 apostas de [jogo do] bicho por dia", conta. "Hoje são só umas 40. O povo só quer saber das máquinas. Aí não tem jeito, tem que trabalhar com as duas coisas."
Como seus vizinhos, proprietários de bares e lanchonetes, dona Marinalva aderiu às máquinas, mas não foi preciso que os comerciantes de São Paulo buscassem seus caça-níqueis na internet. Antes de pensarem nisso, todos receberam a visita do "maquineiro", como é chamado o responsável por negociar a entrega das máquinas no comércio, recolher o dinheiro, fazer o pagamento e a dar a manutenção aos equipamentos.
Com seu bar de frente para uma banca de jogo do bicho, o senhor Cinésio (nome fictício) conta que acaba de instalar quatro modelos da máquina Halloween. "Essas são últimas, as mais procuradas." Nos últimos dias, diz ele, "o negócio andou meio parado" devido às ações policiais. "Mas o maquineiro passou aqui e disse que já tá tudo certo, a que gente pode voltar a trabalhar."
Hoje concorrente de dona Marinalva, o senhor Cinésio faz parte dos milhares de pequenos comerciantes que já incorporaram a receita dos jogos ilícitos às suas contas. Segundo o Sindicato de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares do Estado de São Paulo (Sinhores-SP), cerca de 60% dos 350 mil estabelecimentos associados à entidade têm máquinas de caça-níqueis.
A adesão em peso tem uma motivação bem prática. Ao abrir seu comércio para os caça-níqueis, o dono do estabelecimento passa a dividir o lucro das máquinas com seus proprietários. Isso significa que, se um caça-níquel recebe R$ 10 mil em apostas durante um mês, por exemplo, e deste total paga R$ 3 mil em prêmios, os demais R$ 7 mil são divididos em partes iguais entre o dono do comércio e o maquineiro. "Não tem dinheiro mais fácil, a gente coloca as máquinas aí já consegue livrar pelo menos o aluguel no fim do mês", comenta o senhor Cinésio. "Só com quatro máquinas eu tiro mais de R$ 3 mil. O negócio é bom."
Questionado sobre o medo de lidar com equipamentos proibidos por lei, o dono do bar sintetiza aquela que costuma ser a visão mais comum entre os comerciantes: "Não tenho nada a ver com isso, o equipamento não é meu. Se der qualquer problema, a gente liga pra eles e eles resolvem. Se roubarem, a gente nem precisa fazer o BO [boletim de ocorrência]."
O negócio das máquinas caça-níqueis cresceu tanto nos últimos anos que hoje boa parte da máfia é controlada pelos próprios donos de bingo, diz um um ex-proprietário de um bingo de São Paulo, que não quis se identificar. "Na maioria das vezes são eles que controlam os maquineiros, que depois têm o papel de fazer os acertos com a polícia de cada região."
Para o presidente de uma das maiores empresas de jogos do mundo, que também falou ao Valor sob condição de anonimato, querer banir as máquinas caça-níqueis do país é algo como "dar murro em ponta de faca", disse.
Em países onde os caça-níqueis são regulamentados, diz ele, há uma agência reguladora responsável pelo controle das máquinas. Tal como acontece nas redes de cartão de crédito, cada equipamento é ligado a uma única central de dados, que fiscaliza as operações e evita fraudes. "Países como Suécia, Espanha e Itália já funcionam assim, além de alguns Estados americanos", afirma. "O problema não está na máquina, mas no controle dela, no processo que é usado."
A realidade, porém, está longe do que sugere o executivo dos jogos. Desde que deflagrou a Operação Furacão, há uma semana a Polícia Federal não pára de prender desembargadores, policiais, gente do jogo do bicho e do escalão do governo. Como declarou o secretário do Estado da Casa Civil de São Paulo, Aloysio Nunes Ferreira Filho, a PF está agindo "no atacado."
Ontem, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região reforçou a investida, com a decisão de suspender as liminares que, até então, permitiam o funcionamento de bingos em São Paulo. Na decisão, o tribunal chama a atenção para o fato de que o Supremo Tribunal Federal considera ilegal jogos de bingo, caça-níqueis, máquinas de bingos eletrônicos e outras parafernálias.
Debruçada no balcão e com os olhos grudados na TV, dona Marinalva dá de ombros. Ontem, ao contrário do início da semana, sua loja estava com as portas abertas. Pela manhã, dois clientes jogavam nos caça-níqueis. "Se tirarem as máquinas, não tem problema. A gente fica só com o jogo do bicho."