Título: Apesar de rico e estável, Brasil ainda é terra de promessas
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 13/04/2007, Brasil, p. A4

No lado direito do amplo canal que constitui o porto de Santos, o maior do Brasil, o "Orange Wave" espera uma carga de suco de laranja para ser entregue em Nova Jersey. O "North King", um navio de registro panamenho, está recebendo soja produzida em alguma parte do Sul temperado do país e nas planícies do Centro-Oeste. Mais adiante, filas de automóveis reluzentes aguardam o navio no qual serão embarcados. Terminais portuários, outrora controlados pelo Estado, hoje exibem símbolos corporativos: as logomarcas da Cosan, uma produtora de açúcar e etanol; Bunge, uma trading global de alimentos; e Dow Chemical dos Estados Unidos. No ano passado o porto de Santos quebrou seu recorde de 1909 para a exportação de café, a commodity que dominava o porto no século XIX.

A majestade vitoriana dos navios ancorados não demonstra as dificuldades que os carregamentos precisam superar para chegar e sair do porto de Santos, que lida com 27% do comércio internacional do Brasil. Para a soja, as dificuldades podem começar no campo, onde a falta de armazéns às vezes obriga os produtores a despachá-la para o porto, independentemente do preço. Depois, ela enfrenta uma viagem atribulada por rodovias esburacadas (80% das cargas chegam ao porto de Santos em caminhões, e não em trens).

A privatização dos terminais e um melhor gerenciamento do tráfego melhoraram a eficiência do porto, mas os navios ainda precisam esperar a maré alta para deixar o canal, que é dois metros mais raso do que deveria ser. A autoridade estatal responsável pelo meio ambiente está demorando a conceder a permissão para que ele seja aprofundado. Os custos com o transporte consomem quase 13% do PIB brasileiro, cinco pontos percentuais a mais que nos EUA, segundo Paulo Fleury, da faculdade de administração Coppead, do Rio de Janeiro. E isso é apenas uma pequena parte do fardo que os empresários chamam de custo Brasil.

A fecundidade e a frustração resumem a situação do Brasil hoje em dia. O país está fervilhando de commodities cobiçadas pelas economias em ascensão da Ásia, da soja ao minério de ferro. Nenhum outro país está mais bem colocado para aproveitar o frenesi provocado pelos biocombustíveis. Mesmo assim, o Brasil se recusa a crescer de acordo com as expectativas de seus 188 milhões de habitantes. Desde o fim dos "anos do milagre econômico" da década de 1960 e 1970, quando era a segunda economia do mundo que mais crescia, o Brasil vem ficando para trás. Nos últimos quatro anos, enquanto os países em desenvolvimento como um todo vêm crescendo a uma taxa média de 7,3%, o Brasil vem trotando em 3,3%.

Em 2003, o banco de investimento Goldman Sachs escolheu o Brasil, junto com a Rússia, Índia e China como um dos quatro "Bric" - os países em desenvolvimento que deveriam compartilhar o domínio da economia mundial até 2050. Até agora, ele é o país que menos está crescendo, o que está levando alguns brasileiros a pensar que o "B" do Bric deverá cair. A renda per capita da Coréia do Sul superou a do Brasil ainda na década de 80; poderá não levar muito tempo até que a China e a Índia façam o mesmo.

O Brasil também tem do que se lamentar em terrenos não econômicos. Ao assumir o poder pela primeira vez, o Partido dos Trabalhadores (PT), do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que costumava empreender uma cruzada contra a corrupção, orquestrou um esquema grotesco envolvendo propinas a congressistas em troca de votos, que ficou conhecido como mensalão.

O Congresso que encerrou seu mandato de quatro anos em dezembro é tido amplamente como "o pior da história". Nos últimos 12 meses, as duas maiores cidades do Brasil, São Paulo e Rio de Janeiro, vêm sendo aterrorizadas por bandidos que operam de dentro do sistema prisional. A educação, talvez a maior falha do Brasil, parece estar piorando em vez de melhorar. O transporte aéreo está incapacitado desde a colisão em pleno ar, no ano passado, de um jato de passageiros com um jatinho executivo. O Brasil está "caindo aos pedaços", lamentou no ano passado Lya Luft, colunista da "Veja", a maior revista de notícias do país.

Se está mesmo, os brasileiros parecem não ter percebido. O presidente Lula venceu as eleições presidenciais do ano passado, em grande parte devido ao apoio que vem dando aos mais pobres. O padrão de vida dessas pessoas vem melhorando, graças em parte aos recursos que recebem do governo federal. A desigualdade de renda, da qual o Brasil sofre mais que a maioria dos outros países, finalmente começou a diminuir.

O mesmo acontece com a inflação e seu sintoma persistente, as altas taxas de juros reais. A implementação do real como moeda do Brasil, em 1994, acabou com décadas de inflação elevada. Muitos observadores temiam que Lula pudesse despertar a inflação novamente quando foi eleito presidente pela primeira vez, em 2002. O PT se opôs ao Plano Real. O prêmio de risco sobre os bônus do Brasil disparou. Mas Lula percebeu que a inflação atinge mais os mais pobres.

Desafiando seus "companheiros", ele optou pela estabilidade, seguindo à risca a política "tripartite" implementada por seu antecessor e adversário político, Fernando Henrique Cardoso: um superávit primário (ou seja, antes dos pagamentos de juros) alto o suficiente para reduzir o endividamento em relação ao PIB, um câmbio flutuante e metas de inflação.

Ajudado pelo entusiasmo mundial em relação aos produtos e títulos financeiros brasileiros, a dupla Cardoso-Lula forjou um milagre econômico diferente. A inflação foi de apenas 3% no ano passado, abaixo da meta de 4,5% estabelecida pelo Banco Central. Os mercados acreditam que ela ficará abaixo da meta este ano. Os juros reais estão nos níveis mais baixos desde 2001. O risco de uma crise externa também provocar uma crise interna, o que sempre aconteceu durante a década de 90, diminuiu. As exportações e o superávit comercial dispararam, levando as reservas internacionais acima dos US$ 100 bilhões.

Quando o Brasil se tornou independente, em 1822, o Reino Unido insistiu para que o país assumisse as dívidas da Coroa portuguesa. Agora, o governo brasileiro é um credor internacional. Uma classificação "investment grade" é provavelmente apenas uma questão de tempo. Quando Lula terminar seu segundo mandato, em 2010, o Brasil terá gozado "16 anos de estabilidade e previsibilidade", afirma Mailson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda, que hoje comanda a Tendências Consultoria Integrada. Este é um desconto importante e às vezes subestimado sobre o custo Brasil.

De certa forma, o Brasil é o mais estável dos Bric. Ao contrário da China e da Rússia, o país é uma democracia sólida; ao contrário da Índia, ele não tem disputas graves com seus vizinhos. É o único Bric sem uma bomba nuclear. O ranking Economic Freedom Index, da The Heritage Foundation, que mede fatores como proteção dos direitos de propriedade e livre comércio, classifica o Brasil ("moderadamente livre") acima dos outros Bric ("na maioria, sem liberdade"). Um dos principais motivos de o crescimento brasileiro estar sendo mais lento que o da China e o da Índia é que o Brasil é mais rico e mais urbanizado.

O estudo afirma que a insatisfação persiste porque o Brasil é um campo de batalha entre o progresso e a inércia. Desde que a independência foi proclamada pelo filho do rei português, o Brasil vem acrescentando camada sobre camada de mudança, ao invés de se desfazer da velha e começar de novo.

A Constituição de 1988, que restaurou a democracia depois de 20 anos de uma ditadura militar, não aboliu a cultura da cordialidade, que na política significa a primazia das ligações pessoais sobre as regras. As liberdades e os direitos eleitorais estão consolidados, diz o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, "mas há uma falta de cidadania, de respeito pela lei. Democracia também significa isso".

A Constituição criou direitos muito prontamente - de proteção ao emprego para os burocratas, de receitas tributárias para os governos estaduais -, com os quais o Brasil mal pode arcar. Eles ajudam a explicar por que os juros reais continuam entre os mais altos do mundo, por que os investimentos públicos em rodovias, portos e outros projetos de infra-estrutura são muito pequenos e por que a carga tributária se iguala à de um país europeu rico, ao invés da de uma jovem economia em desenvolvimento.

Desse modo, o Brasil está no meio de uma lenta metamorfose em sua economia, sociedade e política. "O Brasil contemporâneo é um híbrido entre duas moralidades: uma desigual e hierárquica, e a outra universal e igualitária", afirma a antropóloga carioca Jacqueline Muniz. A legalidade rígida aparece lado a lado com a ilegalidade desenfreada, e um setor privado vibrante coexiste com um Estado esclerosado. O presidente Lula, que se apresentou como o castigo dos oligarcas, agora governa com a ajuda destes. Poucos modernizadores não têm manchas em seu passado.

Embora o progresso seja lento, as instituições brasileiras são hoje fortes o suficiente para torná-lo razoavelmente seguro. Recentemente, o Goldman Sachs reafirmou a condição de Bric do país. O crescimento econômico poderá superar os 4% este ano. Quando os números do PIB foram revistos em março, o Brasil descobriu que estava mais rico e menos endividado do que imaginava. Ele poderia estar ainda melhor. Mas isso exigiria outra percepção de Lula, tão importante quanto a conversão à inflação baixa: o principal obstáculo ao progresso é o próprio Estado.