Título: Por uma morte mais digna
Autor: Khodr, Carolina
Fonte: Correio Braziliense, 13/12/2010, Brasil, p. 8

Brasil é um dois piores países do mundo no tratamento de pacientes terminais. Decisões a favor da ortotanásia, que garante o fim da vida de uma forma natural e sem sofrimento, podem reverter esse quadro

Não há como prever a hora da partida dos pacientes internados na ala de cuidados paliativos do Hospital de Apoio de Brasília. Mas, até lá, a equipe do hospital e os acompanhantes fazem o possível para que os doentes terminais possam aproveitar os últimos dias de vida com conforto, dignidade e sem dor. O Brasil está entre os piores no ranking que avalia a qualidade de morte no mundo e começou, no último ano, a apresentar avanços quanto a políticas de terminalidade da vida e de cuidados paliativos. Uma das medidas foi reconhecer o setor de cuidados paliativos como área de atuação médica e respaldar definitivamente a prática da ortotanásia no país. Em 2006, uma resolução do Conselho Federal de Medicina resguardou a prática, evitando punição para o médico que a pratica. Em São Paulo, a conduta é permitida desde 1999.

Na ortotanásia, o paciente que não tem mais possibilidade de cura não recebe mais tratamentos considerados invasivos, apenas aqueles destinados a possibilitar boa qualidade de sobrevida, como o uso de analgésicos. A prática é diferente da eutanásia, quando há interrupção da vida (veja quadro), mas a definição desses conceitos nem sempre é clara. ¿Alguns juristas consideram a ortotanásia como um homicídio passivo, já que a eutanásia muitas vezes é definida como homicídio por compaixão. Mas são coisas diferentes, explica a chefe da Unidade de Cuidados Paliativos do Hospital de Apoio de Brasília, Anelise Pulschen. ¿Na ortotanásia, o lema é viver ativamente até o último momento¿, completa.

De acordo com o Novo Código de Ética Médica, aprovado neste ano, alguns critérios técnicos devem ser observados para a prática da ortotanásia. Além da análise dos sintomas, diagnóstico e quadro clínico do paciente, apenas nos casos de doenças incuráveis, progressivas e com curto prognóstico de vida o tratamento pode ser interrompido e aplicados os cuidados paliativos. Para isso, também é necessário o consentimento do paciente e, caso ele não tenha condição de se manifestar a respeito, a família deve entrar em consenso e tomar a decisão.

Segundo a especialista, um dos desafios da prática da ortotanásia está exatamente na classe médica. ¿Os médicos são formados para salvar vidas a qualquer preço. Aceitar a morte ainda é considerado uma derrota¿, afirma Pulschen. Outra questão é preparar a família que deve também ser escutada e apoiada. ¿Não recebemos formação para se preparar para a morte. As pessoas tem medo de não fazer tudo o que é necessário¿, diz. Nos cuidados paliativos, também a família dos pacientes tem acompanhamento, inclusive após o óbito do parente.

Dedicação Além da decisão de optar pela ortotanásia, a família passa ainda por outra questão, decidir se o parente vai morrer em casa ou no hospital. Valderice de Santana, 66 anos, tem câncer em estado avançado e é uma das pacientes do Hospital de Apoio. De acordo com a sobrinha Maria José Dias, 35, o sonho da tia é morrer na Bahia. ¿Ela sentia muita dor por causa da doença e hoje não mais. Apesar dos remédios fortes às vezes a deixarem sonolenta, ela ainda está lúcida. Queremos mantê-la aqui, então a tranquilizamos dizendo que, quando se for, vamos enterrá-la na Bahia¿, explica. Maria José diz que recentemente Valderice falou novamente sobre a morte: ¿Não tenho medo de morrer. Meu medo é deixar minha irmã e todas as outras coisas que eu ainda poderia fazer¿, disse.

A rotina também é a mesma para Euzita Alves, 61 anos. Ela cuida do marido José Alves, 74, que há quatro anos foi diagnosticado com câncer avançado nos ossos. Sem possibilidade de cura, o lavrador, que morava na Bahia, foi encaminhado ao Hospital de Apoio. ¿Ele estava bem doente quando veio para cá na primeira vez. Mas teve uma melhora e voltamos para a casa de minha filha que mora aqui em São Sebastião. Daí, ele parou de comer e tivemos que voltar. Essa é a terceira vez que isso acontece¿, conta. Euzita diz que não quer mais que ele volte para casa. Ela se sente mais segura com os cuidados que o marido recebe no hospital. ¿Ele não desistiu, não se entregou. Respeito a vontade dele viver e vou ficar ao seu lado até o último momento. Não quero que ele vá logo, mas na hora certa¿, espera.

Discussão avança A decisão do Conselho Federal de Medicina foi questionada pelo Ministério Público, que, em 2007, conquistou um liminar suspendendo a conduta. Mas, neste mês, a Justiça Federal revogou a liminar e, na última quarta-feira, a Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados aprovou a proposta que regulamenta a ortotanásia no país. A proposta ainda precisa ser votada pela Comissão de Constituição e Justiça, pelo plenário da Câmara e pelo Senado.

PRÁTICAS

Distanásia Prolongar a vida de um paciente em estado grave ou terminal, mesmo sem possibilidade de cura, com tratamentos invasivos.

Ortotanásia Deixar a morte vir de forma natural. A equipe médica atua no tratamento paliativo, fazendo com que o paciente não passe por sofrimentos.

Eutanásia Acelerar o processo da morte de um paciente em estado grave ou terminal, inconsciente ou não. O procedimento é feito sem sofrimento e com auxílio médico.

Suicídio assistido Interromper a vida. Prática feita sem sofrimento e com auxílio médico.

MELHOR QUE UGANDA E ÍNDIA

Em julho deste ano, o Brasil amargou um lugar preocupante no ranking de qualidade de morte elaborado pela Economist Intelligence Unit da Grã-Bretanha. Foram avaliados 40 países e o Brasil ficou a frente apenas de Uganda (39º) e da Índia (40º). Um dos critérios utilizados pela pesquisa foi a quantidade de leitos destinados a pacientes em estado terminal para que eles pudessem receber tratamentos paliativos. No Distrito Federal, apenas o Hospital de Apoio de Brasília oferece esse tipo de serviço. São 19 leitos no total, sendo seis quartos com três leitos cada e outro que comporta apenas um paciente e é usado para a hora da despedida. ¿Como eles dividem o quarto, quando um deles fica em estado mais grave e percebemos que a hora está próxima, convocamos a família e os deixamos nesse quarto¿, explica Anelise Pulschen, chefe da Unidade de Cuidados Paliativos do Hospital de Apoio de Brasília. Para ela, dessa forma, os parentes podem ficar mais à vontade e os outros pacientes não passam pelo desconforto de acompanhar a morte do colega.

Na Grã-Bretanha, primeira colocada no ranking, a quantidade de leitos para tratamento paliativo de pacientes terminais é de 50 leitos para cada 1 milhão de habitantes. Para atender essa recomendação, no DF, deveriam haver 125 leitos. Na avaliação nacional, a situação é ainda pior. No Brasil, apenas poucos hospitais oferecem esse serviço. Maria Goretti Maciel, chefe do Serviço de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Público em São Paulo, estima que há no país cerca de 400 leitos. ¿Alguns hospitais possuem unidades específicas para o tratamento paliativo, mas o país ainda está longe de alcançar as condições necessárias para proporcionar uma boa morte aos brasileiros¿, lamenta. Seguindo a estatística britânica, seriam necessários mais de 9,5 mil leitos no país. (CK)

MEMÓRIA Procedimento em ilustres

O ex-governador Mário Covas já sabia que estava com câncer quando elaborou o texto da Lei Estadual nº 10.241/99, que permite a conduta da ortotanásia em São Paulo. Covas morreu em fevereiro de 2001, aos 70 anos, de falência múltipla dos órgãos, provocada pela proliferação do câncer. Quando sancionou a lei, ele disse que gostaria de morrer junto aos seus familiares. A vontade de Covas foi respeitada e, em seus últimos momentos de vida, recebeu cuidados paliativos. Quando Covas apresentou piora em seu quadro se saúde, foi encaminhado a um quarto do Incor e não a uma Unidade de Terapia Intensiva.

O tratamento do câncer de Covas precisou ser interrompido por causa do agravamento de seu estado de saúde. Na terapia para combater o câncer de meninge, ele recebia injeções frequentes na coluna, na região lombar. Desde 1998, quando sofreu cirurgia para retirar um tumor maligno na bexiga, a saúde de Covas já estava debilitada e, dois anos depois, foi confirmada a metástase da doença.

A morte do Papa João Paulo II é outro caso de ortotanásia. Depois de dois meses com a saúde muito debilitada, o Papa morreu aos 84 anos, em abril de 2005. O Pontífice sofria de mal de Parkinson, doença degenerativa e sem cura. Depois de uma das últimas aparições de João Paulo II, já com a saúde muito debilitada, uma multidão de fiéis fazia vigília na Praça São Pedro, no Vaticano. Quando foi internado pela segunda vez no mesmo mês, em fevereiro, o Papa teve que passar por uma traqueostomia. Não mais recuperou as forças nem conseguiu falar à multidão que rezava por ele. Poucos dias depois, houve a tentativa de introduzir uma sonda para alimentá-lo. Mas o pontífice não resistiu à doença e morreu devido a uma infecção urinária, seguida de falência dos rins e de problemas no coração.

Em 1995, o Papa João Paulo II escreveu o Evangelho da vida , onde renuncia ao excesso terapêutico quando não há mais possibilidade de cura. Baseada nesse documento, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) condena a eutanásia e reconhece a legitimidade da ortotanásia.