Título: As razões de Ramallah
Autor: Fontoura, Jorge
Fonte: Correio Braziliense, 13/12/2010, Opinião, p. 15

Doutor em direito internacional, professor titular do Instituto Rio Branco e presidente do Tribunal Permanente do Mercosul O reconhecimento de Estado é, em direito internacional, ato discricionário de governos soberanos, a gerar consequências proporcionais ao peso específico dos atores envolvidos. O Brasil, já no ocaso da gestão de seu inusitado presidente, acaba de reconhecer a Palestina como Estado pleno. Isso abrange reivindicações a incluir os territórios ocupados por Israel e a parte da emblemática Jerusalém, com seu muro de tantas lamentações.

A opção brasileira não vem isenta de elogios e de críticas. Não são opiniões neutras e versadas na razão, o que seria difícil esperar em face das iras ancestrais que assolam o Oriente Médio. Longe de um espasmo de fim de governo, no entanto, a posição brasileira vem com os pés no chão e ancorada em bons argumentos. Possivelmente alheia às intrigas verde e amarelas do WikiLeaks, reflete decisão previsível, haja vista o que foi a política externa de Lula, e também não destoantes dos princípios constitucionais do país e de sua tradição diplomática.

Como o Brasil não é polícia do mundo, logo nós que de tanta polícia carecemos, resta claro que o ato soberano de reconhecer uma nação não gera obrigações a terceiros. Deveria merecer, por conseguinte, críticas menos radicais e incisivas, a tratar-se tão somente de uma opinião, de apenas um país que exerce sua soberania de forma amplamente respaldada pelo direito internacional. No entanto, conta na repercussão do ato a persona que o Brasil tem passado a desempenhar no concerto das nações.

Examinados os argumentos do Itamaraty, fica cristalina a exortação à paz e ao entendimento, por mais utópico que possa parecer. Se conforme a proposta de Telavive a solução da questão residiria na fórmula ¿dois povos, dois Estados¿, o suporte que a comunidade internacional deva fornecer à Palestina é primordial: não haverá negociação minimamente razoável entre partes brutalmente desiguais. E Ramallah, dilacerada pela ocupação de seu território, por seus dilemas fratricidas e por seu fanatismo religioso, jamais poderá negociar ¿dois Estados¿ em condições de igualdade. Não há dignidade na miséria.

No plano jurídico, a ação brasileira pouco traz de novo, pois a Palestina já era sujeito de direito, ou como Estado soberano para os que a reconheciam, ou como nação insurgente para os demais. Como nação insurgente, a autoridade palestina foi inclusive reconhecida de forma tácita mesmo por Estados Unidos e por Israel, a ponto de firmar tratados, como os Acordos de Camp David, ou de ter seu líder histórico Arafat a pronunciar-se no púlpito mor das Nações Unidas. Ainda no plano político, a posição brasileira de também condenar o terrorismo, inaceitável para um Estado que deseja negociar com seus vizinhos, reflete atitude equilibrada e sem parti pris.

Assim como os outros países ditos Brics, Rússia, Índia e China, o Brasil formaliza a Palestina como sujeito de direitos, mas também com responsabilidades perante a ordem internacional. E, da mesma forma como os demais conservam boas relações com Israel, espera-se que os laços entre Brasília e Telavive permaneçam incólumes, densificados pelo recente tratado de livre-comércio com o Mercosul.

Se o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu foi drástico ao comentar o ato de reconhecimento brasileiro, resta a certeza de que governos passam e nações ficam. Permanecem assim como a amizade que dedicamos ao povo israelense, desde a criação de seu Estado. Em 1948 era Israel, impactada pelo espectro do holocausto, a nação debilíssima a ser ajudada, carente de território e de reconhecimento internacional. Na ocasião, com o mesmo sentido de justiça que agora utiliza para os palestinos, o Brasil apoiou firmemente a criação do Estado de Israel, sob os escombros da Europa e contra o poderio ameaçador do imperialismo soviético. Hoje, mais que o antológico discurso de Oswaldo Aranha, proferido na ONU em favor de Israel, é a tradição diplomática e o protagonismo de conciliação que dão indenidade à posição brasileira. Não contra os judeus, ou para irritar a Casa Branca, mas a favor de uma nova chance à paz.