Título: Aborto: você decide
Autor: Tiago, Ediane
Fonte: Valor Econômico, 13/04/2007, EU & Fim de Semana, p. 4

A controvérsia sobre a descriminalização do aborto ganhou novo fôlego no fim do mês, quando a Comissão de Constituição e Justiça do Senado reacendeu a discussão ao aprovar um projeto que autoriza a realização de um plebiscito para definir os rumos da proposta de legalização do aborto no Brasil. A consulta à população ainda depende de aprovação no Senado e na Câmara dos Deputados, mas as manifestações de grupos contra e a favor da descriminalização já entraram em cena e as pesquisas de opinião dão sinais de que o embate será longo.

De acordo com levantamento do Datafolha divulgado no fim de semana passado, apenas 16% dos entrevistados apóiam mudanças na lei, que permite o aborto quando a gravidez oferece risco de morte para a mãe ou em caso de estupro. "Essas pesquisas mostram que o povo, assim como a Igreja Católica, está a favor da vida", afirma d. Antônio Augusto Dias Duarte, bispo auxiliar do Rio.

O principal argumento da Igreja Católica e dos grupos que rejeitam o aborto está na preservação da vida da criança, que para eles se inicia na hora da concepção. "Nós nos baseamos em fatos da própria ciência para promover uma visão humanitária sobre o aborto. A partir do momento da fecundação, a célula inicia o desenvolvimento humano e, portanto, a vida", afirma.

A influência da Igreja Católica no Brasil e as discussões éticas e morais são os maiores obstáculos para os grupos a favor da descriminalização. Do lado desses grupos estão as estatísticas sobre o número de mortes maternas causadas pela realização de procedimentos inseguros e as conseqüências da clandestinidade à saúde da mulher - números alardeados por médicos, sanitaristas e o pelo próprio ministro da Saúde, José Gomes Temporão -, além do argumento de que toda mulher tem o direito de decidir se quer ter ou não filhos e quando pretende tê-los, garantido pelo Estatuto da Mulher da Organização das Nações Unidas.

As discussões sobre o aborto no Brasil são ampliadas pelas conquistas em relação à legalização de outros países de forte tradição católica. Nesta semana, o governo português aprovou a lei que permite o aborto com até dez semanas de gestação e deu novo ânimo para quem luta na legalização da prática na América Latina. No México, onde a estimativa é de 110 mil abortos ilegais por ano, a expectativa é de legalizar o aborto na capital - Cidade do México - em poucas semanas.

Na Argentina, os grupos pró-aborto também defendem uma legislação que permita a interrupção da gravidez, hoje restrita aos casos de risco de morte para a mãe e estupro. Segundo o Comitê da América Latina e Caribe para Defesa dos Direitos da Mulher, entre 350 mil e 400 mil abortos são realizados de forma ilegal todo ano na Argentina, sendo esta a primeira causa de morte materna no país. No sistema de saúde, a estimativa é de que 40% dos leitos de ginecologia e obstetrícia são ocupados por mulheres que tiveram complicações em abortos.

Sob a ótica da saúde pública, o aborto é considerado um grave problema, que leva anualmente 68 mil mulheres à morte em todo o mundo, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Em 2005, os dados oficiais brasileiros apontaram a morte de 148 mulheres por conta de aborto inseguro, o que representou 12,6% das causas obstétricas diretas. As mortes maternas traduzem o número mais duro da prática do aborto, mas pouco expressivo quando comparado ao número de mulheres que buscam no aborto a alternativa para uma gravidez indesejada.

Lula Marques/Folha Imagem O ministro da Saúde, José Gomes Temporão: "O Congresso é que vai decidir se vai ter mudança de lei ou se haverá plebiscito", disse Temporão na terça-feira As estatísticas da OMS apontam que, no Brasil, 31% das gravidezes terminam em abortamento, o que significa mais de 1,4 milhão de abortos espontâneos e inseguros por ano. A taxa é de 3,7 abortos para cada grupo de 100 mulheres entre 15 e 49 anos e está acima da média da América do Sul, onde o índice é de 3,4 abortos para cada grupo de 100 mulheres - o mais alto do mundo. Os números globais também são grandes, uma vez que a estimativa é de 46 milhões de abortos provocados por ano, 18 milhões deles realizados de forma insegura.

No Brasil, o aborto é praticado em clínicas, ambulatórios ou em casa, com a ajuda de parteiras (ou "curiosas"). Também são comuns os casos nos quais as mulheres que desejam interromper a gravidez realizam o procedimento sozinhas. Os métodos vão desde a introdução de objetos pontiagudos no útero, até a utilização de medicações abortivas.

"As clínicas em geral utilizam os métodos de aspiração para a retirada do feto, que são rápidos, simples e não oferecem grandes riscos", explica o ginecologista Marcio Pepe. Segundo o médico, há no mercado uma tecnologia para aspiração manual intra-uterina, que consiste na utilização de uma seringa a vácuo acoplada a cânulas de plástico que são introduzidas no útero para sucção do feto. "O método exige apenas uma sedação."

Pepe não realiza abortos, mas confirma que a prática é comum no Brasil. "Quando as mulheres não desejam a criança, buscam alternativas. Algumas podem ser perigosas", comenta. Para quem tem dinheiro, as clínicas oferecem conforto, segurança e as condições médicas ideais para o aborto. Maria (nome fictício) recorreu a uma clínica em São Paulo quando descobriu que estava grávida aos 46 anos. O método anticoncepcional que utilizava falhou e a notícia da gravidez caiu como uma bomba. "Meus filhos já tinham mais de 20 anos e não queria recomeçar. Além disso, considerei os riscos de uma gravidez na minha idade", conta.

O próprio ginecologista de Maria indicou uma clínica, onde ela realizou o aborto por R$ 2 mil. "Foi tudo muito rápido, não senti nada e não tive nenhuma complicação. Não me arrependo porque foi a melhor opção para a minha família."

Para as mulheres sem condições financeiras, restam práticas populares como o uso do Cytotec - que tem como princípio ativo o Misoprosol, droga indutora de aborto. O medicamento, indicado para úlcera gástrica, teve a fabricação proibida no Brasil, em virtude de seu uso em larga escala como abortivo. Apesar da proibição, as brasileiras encontram a droga no mercado negro. Importados do Paraguai, os comprimidos de Cytotec são encontrados em centros urbanos nas mãos de camelôs e em farmácias de bairro. Na Praça da Sé, em São Paulo, é possível encontrar o medicamento, pelo qual é cobrado o preço médio de R$ 50 o comprimido. Para realizar o aborto, são necessárias quatro unidades.

Uma pesquisa rápida na internet traz ofertas de "kits de aborto", com quatro cápsulas do Cytotec, acompanhadas por um manual de instruções. O kit pode ser enviado pelo correio ao custo médio de R$ 240. "Quando a gravidez está no início, esse método costuma ser bem eficaz. Por isso, é muito utilizado", explica Pepe.

Ana (nome fictício) utilizou o Cytotec para realizar um aborto quando ainda era solteira. Comprou o medicamento na zona leste de São Paulo e contou com a ajuda de uma parteira para a aplicação. Teve complicações, hemorragias e precisou tomar outros medicamentos para recuperar-se. Todos prescritos pela parteira. Não procurou um hospital e contou com a sorte para não morrer. Até hoje carrega a culpa pelo que fez e o medo de que o marido, pai de suas duas filhas, descubra. "Se ele souber que fiz algo assim, vai embora."

Em países nos quais a interrupção da gravidez é permitida, o mercado oferece às mulheres a chamada "pílula do aborto" ou RU-486. A droga é oferecida em clínicas dos Estados Unidos como uma solução para abortamento sem intervenção cirúrgica nas primeiras semanas de gravidez. "Na França, o método também é utilizado", comenta Pepe. Nesse caso, a mulher vai à clinica, toma uma dose do remédio e espera o efeito em casa. Após o sangramento, volta à clinica para acompanhamento.

No ano passado, o Sistema Único de Saúde (SUS) internou 2.066 mulheres que interromperam a gravidez de forma legal - com custos de R$ 308 mil para o Estado. Já internações motivadas por curetagens pós-aborto - que correspondem aos casos de complicações decorrentes de abortamentos espontâneos e inseguros - alcançaram o número de 221.169 e custaram ao SUS R$ 33,6 milhões. A curetagem, técnica de raspagem para retirar resíduos do útero, é o segundo procedimento obstétrico mais praticado nas unidades de internação, superado apenas pelo número de partos normais. Para complicar ainda mais a situação, um estudo realizado pelo Alan Guttmacher Institute sobre aborto clandestino na América Latina revelou que apenas 20% das brasileiras que induziram um aborto tiveram de ser hospitalizadas em conseqüência de complicações.

Na tentativa de evitar o aumento de mortes maternas, o SUS instituiu, em 2004, a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento, criada pelo Ministério da Saúde. Nesse ponto, o governo Lula avançou ao garantir o atendimento médico a pacientes que optaram pela interrupção da gravidez. A medida não serve para legalizar o aborto, mas aponta preocupação com o tema. "A sociedade precisa entender que quanto mais restritivas as leis, mais as mulheres vão recorrer aos métodos inseguros, colocando sua vida em risco", comenta Leila Adesse, médica sanitarista e diretora da ONG Ipas Brasil, que promove os direitos reprodutivos das mulheres.

Ela questiona, ainda, qual é o prejuízo para uma família com a morte de uma mulher. "Atualmente 30% das famílias brasileiras são chefiadas por mulheres. O papel social da mulher passou por uma transformação e isso precisa ser considerado quando tratamos da legalização do aborto."

O aborto induzido por ervas ou manipulação é usado como forma de controle de natalidade há milhares de anos. Algumas pesquisas apontam a prática do aborto no antigo Egito, Grécia e Roma. Na Idade Média, o aborto nos primeiros meses de gravidez era aceito em grande parte da Europa Ocidental. No século XIX, a opinião sobre o aborto começou a mudar, com a sua proibição, em qualquer circunstância, feita pela Igreja Católica em 1869. Desde então, a legalização tornou-se um tema polêmico e a clandestinidade vigora nos países em que as leis restringem o aborto.

A utilização de estatísticas mundiais para justificar a necessidade de legalizar o aborto é constantemente questionada por grupos que são contra a prática. Para esse setor da sociedade, os dados podem ser usados para tentar confundir a população e permitir a legalização em massa do aborto como forma de controle de natalidade.

"A discussão precisa ser profunda. Se o número de abortos é tão grande, é porque algo está errado nas políticas públicas", observa Marília de Castro, coordenadora do Comitê Estadual em São Paulo da Frente Parlamentar em Defesa da Vida. Para ela, os números utilizados são estimativas e podem, muitas vezes, não refletir a realidade. "O único fato dessa discussão é de que o aborto é crime, pois tira a vida de um ser humano."

Outro problema do projeto de lei proposto, apontado por ela, é que se trata simplesmente da revogação do artigo 124 do Código Penal, que restringe o aborto no Brasil. "Trata-se simplesmente de revogação. Não há nenhum tipo de regulamentação proposta, a não ser a permissão para abortar em qualquer estágio da gravidez." Esse foi o argumento da campanha do grupo ao questionar a população sobre a aprovação do aborto até mesmo com nove meses de gravidez, quando o bebê está pronto para nascer. "Também temos receio de que a legalização banalize o aborto a ponto de se tornar mais um método contraceptivo."

Esse argumento é fortemente rebatido por grupos que apóiam a descriminalização. "O aborto é e continuará sendo uma atitude desesperada. Precisamos apenas garantir que a mulher consiga tomar esta difícil decisão com o máximo de respeito e segurança", comenta Leila, da Ipas.

De acordo com Leila, a realização de um plebiscito será benéfica, porque os argumentos contra e a favor ao aborto serão expostos à sociedade, que poderá discutir sobre a legalização de posse de todas as informações. Já a preocupação da Igreja Católica está na forma como o plebiscito será conduzido. "Em Portugal, a questão foi formulada de uma forma que confundiu a população. Será que conseguiremos realizar uma questão clara para os brasileiros?", pergunta d. Antônio Augusto.

Para quem lida com problemas sociais causados por gravidez na adolescência, a legalização não parece tão absurda. Maria Helena Vilela, educadora sexual e diretora do Instituto Kaplas, afirma que o aborto é uma realidade que não pode ser ignorada no Brasil e o país precisa encontrar formas de reduzir o número de procedimentos feitos. A proibição, nesse caso, parece não funcionar. "O sexo está presente em toda a sociedade, assim como a gravidez. É preciso informar e motivar a população para o planejamento familiar", diz. A motivação, segundo ela, é diferente de dar informação e acesso a meios contraceptivos. "Os pais precisam entender o que é ter um filho, como os métodos contraceptivos funcionam e como um descuido pode afetar sua vida."

De fato, os aspectos sociais são levantados tanto por grupos contra como por grupos a favor do aborto. A falta de políticas públicas para o planejamento familiar e para viabilizar o acesso a métodos contraceptivos modernos é apontada como a principal causa dos abortos no Brasil. "Nos postos que são distantes dos centros urbanos não há nem camisinha, quem dirá pílula", alerta Maria Helena.

Para d. Augusto, a sociedade precisa ir a fundo nos aspectos sociais e econômicos e discutir problemas como crescimento econômico, emprego e aumento de renda. "O governo quer se isentar de discutir o que realmente é importante. O Brasil precisa dar condições para que os pais criem seus filhos", avalia.