Título: Pondo tempero na reforma política
Autor: Santos, Wanderley G. dos
Fonte: Valor Econômico, 26/04/2007, Opinião, p. A14

Falta tempero nas propostas de reforma política. São essencialmente iguais, expõem justificativas semelhantes e todas sustentam que as modificações trarão os mesmos benefícios: fortalecimento dos partidos e extermínio dos políticos trânsfugas e corruptos. Balela. As medidas impõem vetos à troca de partidos, o voto em lista fechada e o financiamento público das campanhas. O político não pode trocar de partido, o eleitor não pode trocar de político e, quem paga imposto, ou troca de país ou paga a conta. Belo arranjo, mas sem tempero. Ao contrário de processos democráticos, cheios de condimentos malemolentes. Cito alguns, colaboração de um anti-reformista radical. A premissa reformista de que o sistema político brasileiro funciona muito mal e requer várias modificações é completamente errada. Não se sustenta em nenhum debate sério. Passou da hora de dizer com todas as letras que o sistema político brasileiro apresenta excelente desempenho democrático no presente momento histórico. Talvez por isso pretendam reformá-lo.

Tempero número um: a democracia é o único sistema político que aceita como legítima a agitação de demandas que não podem ser atendidas. Fazer reivindicações públicas nunca foi saudável. Nas monarquias absolutistas equivalia a ofender o monarca e nas repúblicas representativas oligárquicas serviam de prova de que havia um movimento revolucionário, portanto ilegal, em curso. A escandalosa declaração de que a questão social seria um caso de polícia não é uma jabuticaba brasileira, foi uma constante da política oligárquica em todo o mundo civilizado. Não deixou de ser um progresso, visto que a punição para manifestantes, durante as monarquias absolutistas, era a pena capital, enquanto as oligarquias, com base em legislação repressiva, contentavam-se em estropiar os participantes de greves ou passeatas. Eventualmente, extraditá-los. Manchester e Detroit viviam em festa, para não mencionar os batidos exemplos de Rio de Janeiro e São Paulo, lá pelas décadas de dez e vinte do século passado.

É com a democracia que se torna legítima a reivindicação pública por ações de governo. Tornam-se legítimas, inclusive, as demandas coletivas por benefícios ou privilégios que o sistema não pode, em hipótese alguma, atender. Por exemplo, o estabelecimento de salários legalmente diferenciados para o mesmo tipo de trabalho (porque é contra o princípio da isonomia) ou a construção de açudes em todos os locais que os demandam (pela escassez de recursos). As reivindicações não são materialmente atendidas, mas não cabe a um governo democrático impedir que sejam formuladas. Aos que caírem na tentação de desprezar o respeito a reivindicações não atendidas recomenda-se o retorno à história das oligarquias. O direito à palavra é o primeiro atestado distinguindo alguns seres humanos dos chimpanzés.

Além de facilitar o reconhecimento de seres humanos, o direito à palavra (também chamado pelos antigos gregos de isegoria) agencia os fundamentos do tempero número dois, a saber, a singularidade de a democracia ser também o único sistema em constante débito com sua clientela, os eleitores. O volume de insuficiências econômicas e sociais condena as democracias a permanente escolha trágica, ou compensações ("trade-offs"), entre pedidos que serão, e outros que não serão atendidos. É confessar a inexistência de decisões ótimas, pelo simples fato de que nunca é possível satisfazer cem por cento a cem por cento das demandas de cem por cento dos demandantes. Por melhor que se desempenhem, as democracias sempre aparecerão como subótimas para algum grupo de eleitores.

-------------------------------------------------------------------------------- Instituições do país, se comparadas com também imperfeitas democracias existentes, têm desempenho espetacular --------------------------------------------------------------------------------

A expressão "déficit democrático" surgiu recentemente no vocabulário político, com grande aceitação de crítica e de público. Lembra outros mais ou menos recentes, como "revolução nacional-burguesa", "teoria da dependência" e "democracias consolidadas", com a vantagem de designar algo que efetivamente existe, ou seja, o débito democrático. Mas isto não é uma descoberta, apenas o neobatismo da condição original das democracias: quem diz democracia, diz democracia deficitária. E esta é uma das inevitáveis conseqüências do direito à palavra, à isegoria.

A insatisfação com a democracia não se transforma em oposição institucionalizada ao governo, ou pior, em sublevação, justo pelo caráter aleatório e fugaz das perdas geradas pelo mecanismo das escolhas trágicas. O mesmo grupo vociferante contra o sistema, em virtude de uma decisão que o contrariou, estará pronto para defendê-lo em momento subseqüente, quando for ele o beneficiário da ação governamental. A democracia não é o sistema em que ninguém perde, mas aquele no qual, em princípio, as perdas não são sistemáticas, mas aleatórias.

Evidentemente que as democracias são assediadas por todo tipo de aglomeração de interesses buscando introduzir viés no mecanismo de compensações. Igualmente sabido que os grupos econômicos e sociais dispõem de recursos desiguais na disputa por favores do governo. Consequentemente, todo sistema democrático termina por ser penetrado por interesses organizados, reduzindo o caráter aleatório das perdas. Não são os mesmos grupos nas diversas democracias que conseguem a façanha, nem são permanentes em sua vitória. Os grupos que conseguem enviesar as escolhas trágicas das democracias variam no tempo e no espaço, no melhor dos casos impedindo que elas recaiam em práticas oligárquicas.

É da competição entre grupos pelos favores democráticos que surge o terceiro tempero: a aleatoriedade das democracias é relativa. Por isso elas são diferentes entre si e têm a cara dos respectivos grupos melhor favorecidos, independentemente do regime eleitoral e partidário de cada uma. A imperfeição das democracias não reside na incapacidade de eliminar a agenda de necessidades dos eleitores, mas no desvio que sofre na imparcialidade da distribuição das perdas. Fragilidade insanável, que pode, todavia, ser remediada pelo uso competente do direito à palavra. A reivindicação democrática fundamental concentra-se em que os governos garantam a isegoria e, ouvindo a palavra das ruas e dos parlamentos, resistam ao assalto dos grupos de interesse, assegurando a aleatoriedade na alocação dos sacrifícios. Imaginar que as democracias estão aí para extirpar todas as carências significa não haver compreendido o sentido dos sistemas oligárquicos ou do autoritarismo que a antecederam.

Esses são os temperos básicos da democracia, parâmetros para avaliar o desempenho das instituições em ato. Medido por eles, o desempenho das instituições nacionais, em comparação com as igualmente imperfeitas democracias existentes, é espetacular. A extensão da mobilização popular, eleitoral e associativa, a garantia do direito à palavra, a competição entre grupos de interesse, a competição entre políticos e partidos, a efervescência do Legislativo, a presença do Judiciário, a permanente cobrança ao Executivo, a lisura das eleições, a renovação parlamentar promovida pelo eleitorado de aproximadamente um terço da representação a cada eleição (contra 2% nos Estados Unidos e menos de 10% na Inglaterra), a defesa dos direitos individuais (feridos de morte pelo Ato Patriótico, nos Estados Unidos, e pela vigilância tipo Big Brother, na Inglaterra), a incorporação política das fronteiras ao Norte e Centro-Oeste do país, a onda investigativa dos maus costumes políticos, a paulatina quebra de privilégios institucionalizados, são marcas democráticas a serem defendidas dos ataques elitistas dos reformadores retrógrados. O inimigo fundamental da democracia é a desigualdade política. Pois as propostas de reforma restabelecem a hierarquia entre líderes e políticos comuns e entre partidos e eleitores. Em todas, o objetivo de reduzir o valor da palavra e do voto, comprometendo a isegoria e a isonomia vigentes. Reformas sem sal, sem tempero, sem grandeza. Vão trabalhar e deixem a democracia brasileira em paz!

Wanderley Guilherme dos Santos é membro da Academia Brasileira de Ciências. Email: leex@candidomendes.edu.br