Título: Um ano depois, a estatização ainda patina na Bolívia
Autor: Schüffner, Cláudia
Fonte: Valor Econômico, 26/04/2007, Especial, p. A16

Um ano depois da estatização dos recursos de petróleo e gás na Bolívia, poucas das medidas se concretizaram entre as que constavam do Decreto Supremo anunciado pelo presidente Evo Morales no dia 1º de maio, quando invadiu o campo de gás de San Alberto, da Petrobras, com tropas do Exército.

A refundação da Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB) anda a passos lentos. Seu último presidente, Manuel Morales Olivera, foi afastado em fevereiro, quando era investigado por uma comissão do Congresso que averiguava suspeita de falsidade material e ideológica durante o período em que negociou os 44 contratos de aumento da participação do Estado e mais impostos com doze companhias de petróleo.

Os contratos, já sob a nova legislação que eleva a mordida do Estado sobre o lucro das empresa, foram assinados em 28 de outubro do ano passado, 180 dias após o decreto de estatização, mas ainda não se tornaram efetivos por erros na documentação que foi enviada ao Congresso. Eles foram finalmente aprovados na quinta-feira passada e na segunda, 23 de abril, se tornaram lei. Mas ainda não foram registrados em cartório.

O próximo passo no processo é a estatização de algumas empresas transportadoras, que está sendo negociada entre o governo de Evo Morales e petroleiras. São elas a Transredes (Shell e Ashmore), Transierra (Petrobras Bolívia) e Gás Oriente Bolívia (que controla um gasoduto até Cuiabá) também da Shell/Ashmore. O decreto determina ainda que a YPFB assuma o controle das empresas parcialmente privatizadas na década passada - as petroleiras Chaco e Andina, controladas pela BP e Repsol, que surgiram da divisão dos ativos da própria YPFB - e a Transredes. Elas tinham como sócios na privatização fundos de pensão, que atenderam à ordem oficial de transferir suas ações para o Estado.

O mesmo não aconteceu com as empresas privadas, que mostram grande resistência, como é o caso da Shell, Repsol e das refinarias da Petrobras. A negociação com a estatal brasileira para que a YPFB tenha o controle (50% mais uma ação) dessas companhias vive um dos momentos mais delicados desse processo. A Petrobras tem dito que não abre mão da gestão das suas refinarias e quer um preço justo pelas ações que forem repassadas ao Estado. O governo Morales manteve sua disposição de retomar as companhias pelo seu valor contábil, que soma aproximadamente US$ 70 milhões. O valor econômico destes ativos seria entre US$ 200 milhões a US$ 300 milhões, conforme apurou o Valor.

As conversas da YPFB com os compradores do gás boliviano também não são tranqüilas. Um acordo prevendo alta do preço do gás para Cuiabá esbarrou na tentativa do governo boliviano de assinar um contrato do tipo interruptível. Isso foi considerado inaceitável pelos donos da Pantanal Energia (térmica de Cuiabá), que produziria energia igual "a um vagalume" como brincou uma fonte em La Paz. Com o Brasil foi acertado um aumento do preço das partes mais ricas do gás, mas isto ainda não aconteceu.

A YPFB também está em fase de negociação para subir o preço do gás exportado pela BG Bolívia para a Comgás em São Paulo (que deve aumentar US$ 0,70) e com a Repsol YPF, para o gás que é exportado para a Argentina. Longe de aumentar investimentos, a indústria petroleira ainda não tem planos concretos para aportar os US$ 3 bilhões que o presidente da Câmara Boliviana de Hidrocarbonetos , José Magela Bernardes, calcula serem necessários para impulsionar a nova onda de produção no país.

Esses US$ 3 bilhões possibilitariam à Bolívia começar a produzir gás e condensado de petróleo, construindo as instalações para a retirada desses dois produtos em três campos gigantes já descobertos no país e que estão adormecidos: Margarita (com produção irrisória), Itaú e Incahuasi, operados respectivamente pela Repsol e Total. Bernardes ressalta que falta ainda clareza e estabilidade das regras. "O governo também precisa fortalecer a YPFB", frisa.

Enquanto os investimentos não vêm, o país produz 41,5 mil barris de derivados de petróleo, apesar de ter uma capacidade instalada de 60 mil barris/dia. E a capacidade de estocagem e transporte de gás já está no limite, como se viu na semana passada, quando as exportações de gás e líquidos de petróleo para o Brasil tiveram corte de 20%, e para a Argentina caíram a zero.

No entanto, o presidente da Câmara Boliviana de Hidrocarbonetos, que reúne as petroleiras instaladas na Bolívia, se diz otimista. "Há certos elementos importantes para o negócio do gás, e o primeiro é ter reservas. E a Bolívia as tem". O segundo elemento, diz, é ter mercado. "Isto tem no Brasil, Argentina e Chile, se a questão política permitir". O terceiro elemento é o transporte, enumera Bernardes. "Temos hoje um cordão umbilical com o Brasil, que é o Gasbol, mas também temos um acordo de venda com a Argentina. O que está faltando é segurança jurídica."

Apesar das companhias pagarem hoje mais impostos, elas continuam controlando a produção e o transporte do gás e do petróleo boliviano. A arrecadação do governo com impostos sobre a produção de hidrocarbonetos (gás e petróleo) alcançou 14,2% do PIB em 2006, contra 9,2% em 2005. As duas únicas refinarias da Bolívia, adquiridas pela Petrobras em 1999 e estatizadas pelo decreto, continuam sob a gestão da estatal brasileira, que negocia com o governo a indenização pelo investimento e a manutenção do controle operacional das unidades.

Em El Alto, 400 m acima da altíssima La Paz, no altiplano boliviano, o mineiro Edy Fernandez, um mestiço descendente da etnia aymara, diz que nada mudou na sua vida no último ano, apesar das promessas de Morales. "Nada mudou para quem não está envolvido na política. Há muita gente do campo que está apoiando o partido de Evo mas não acho que essa é a saída. Querem trazer o império Inca de volta ao invés de olhar para a frente. E acho que temos que olhar o futuro dos nossos filhos e não algo que nos retroceda à um passado sem modernidade e nem tecnologia", diz Fernandez.

Funcionário de uma pequena mineradora da região que integra a faixa polimetálica mais importante do mundo - com reservas de prata, ouro, estanho, urânio e zinco- o mineiro de 34 anos, natural do altiplano, não conhece o motorista de táxi Jesus Suárez, de 31 anos, que mora a 1.000 km de distância, em Santa Cruz de la Sierra. Mas ambos compartilham de certa desconfiança sobre os rumos da política do governo Morales.

"Há muita discriminação contra a gente do Oriente", diz Suárez, se referindo à região de Santa Cruz de la Sierra e arredores, que fica em uma planície e faz contraponto com o Ocidente, que é formado pelo altiplano próximo a La Paz, na cordilheira dos Andes.

"O presidente quer mudar, mas não se fazem mudanças de 90 graus de uma hora para outra. Desde a estatização, os únicos favorecidos são os políticos. Para a classe trabalhadora nada mudou. Com o anúncio da estatização se falou em aumentar os salários, mas isso ainda não aconteceu. E o presidente só briga. Até agora foram só brigas e promessas. E ele quer que as pessoas o admirem", diz o taxista Jesus. O tom é tão acalorado que ele esquece de entrar na poeirenta rua que nos levaria ao nosso destino.

Os trabalhadores ouvidos pelo Valor na semana passada reclamam mudanças palpáveis para os que trabalham. Também denunciam um clima de hostilidade contra quem não pertença às etnias aymara, quéchua ou guarani, que somam mais de 50% da população. Estas são as principais etnias indígenas num país onde os índios sempre foram tratados de forma racista pelos brancos. Para alguns dos entrevistados, como Vitoriano Mamani, cozinheiro que trabalha numa mina de El Alto, onde também está empregado Fernandez, Evo perdeu o rumo da sua revolução ao adotar uma ideologia estranha a seu povo, o bolivarianismo do venezuelano Hugo Chávez. Mas todos apóiam "em princípio" a estatização, por considerarem que as empresas estrangeiras expropriaram o país por muitos anos, como destacou Fernandez.