Título: O direito de greve dos servidores públicos
Autor: Manus, Pedro Paulo Teixeira
Fonte: Valor Econômico, 11/04/2007, Legislação & Tributos, p. E2

A greve constitui um direito coletivo, reconhecido pelo artigo 9º da Constituição Federal, dos trabalhadores. Trata-se da atribuição constitucional aos trabalhadores da iniciativa privada de cessar o trabalho pacífica e temporariamente como forma de fazer frente ao poder econômico do empregador, buscando equilibrar o poder de direção do empregador com o direito de cessação coletiva do trabalho, como forma de pressão, no processo de negociação coletiva.

O artigo 37 da Constituição Federal, que dispõe sobre a administração pública, além de fixar os princípios da administração direta e indireta nos três níveis, assegura em seu inciso VII que "o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica."

No âmbito da administração pública, há 18 anos aguarda-se a edição da lei que deverá regulamentar o exercício do direito de greve. Esta demora tem gerado sérios prejuízos não só aos servidores públicos mas à população e ao próprio Estado, pelas dificuldades de lidar com os movimentos de greve no âmbito da administração justamente em função da ausência de procedimentos a adotar, o que só a lei poderá assegurar.

A lei não impede a realização da greve, bastando para tanto lembrar da nefasta Lei nº 4.330, de 1964, e do Decreto-lei nº 1.632, de 1978, que visavam impedir a realização de greves no país ao tempo do golpe militar de 1964 e que, ainda assim, não impediram que os trabalhadores realizassem muitas greves, mesmo ilegais, com sacrifícios e perdas pessoais enormes, mas com importantes avanços rumo ao regime democrático.

Atualmente temos um número menor de greves na atividade privada, mesmo com uma legislação mais democrática, como é a atual lei de greve - a Lei nº 7.783, de 1989. Isto revela que a tentativa de impedir a greve através da lei ou sonegando aos trabalhadores sua regulamentação é inócua.

No âmbito do serviço público temos presenciado vários movimentos grevistas que trazem à administração pública um sério dilema. Não há regulamentação do exercício do direito de greve e, portanto, tais movimentos são ilegais, mas não obstante eclodem e causam prejuízos ao tomador de serviços e à população.

Se o legislador tivesse cuidado, ao longo destes 18 anos de vigência da atual Constituição Federal, de regulamentar o exercício do direito de greve do serviço público, já teríamos tido tempo suficiente para que servidores e administração desenvolvessem a experiência da negociação coletiva, essencial à solução dos impasses decorrentes de interesses contrapostos entre prestador e tomador de serviços.

Há uma paralisia da administração diante do fato não regulamentado e, no vazio da lei, não há qualquer experiência de negociação coletiva no âmbito do serviço público, tornando o Estado incapaz de prevenir a greve e de encaminhar soluções eficientes.

-------------------------------------------------------------------------------- No vazio da lei, não há negociação coletiva no âmbito do serviço público, tornando o Estado incapaz de prevenir as greves --------------------------------------------------------------------------------

A administração pública sofre com a duplicidade de regimes jurídicos que vinculam seus servidores e as conseqüências de tal fato. Passaram a conviver e a desenvolver as mesmas atividades servidores públicos estatutários e servidores públicos celetistas, o que gera conflitos de interesses, pois os serviços são os mesmos mas o regime jurídico de ambos é distinto, exigindo tratamento legal diverso, com direitos e obrigações igualmente distintas para cada servidor.

Lembre-se que mesmo no âmbito da atividade privada, regida pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a lei de greve reconhece serviços e atividades essenciais que não podem ser paralisados totalmente, conforme dispõe o artigo 10 da Lei nº 7.783, e que exigem no curso da greve a ação do empregador e dos grevistas para manter estas atividades essenciais, conforme o artigo 11 da mesma lei. Somente a regulamentação do exercício do direito de greve garante o respeito aos interesses sociais, conciliando a paralisação com os direitos da coletividade e forçando o processo de negociação coletiva e a conseqüente solução do problema.

Nos dias de hoje sobressalta-nos a situação que se verifica no tráfego aéreo, decorrente da insatisfação dos trabalhadores controladores de vôo e os problemas daí advindos. Dois são os problemas jurídicos. Inicialmente, a ausência de regulamentação do exercício do direito de greve dos servidores públicos civis, após todos esses anos. De outro lado o fato de a atividade ser desenvolvida por servidores públicos civis e por militares, o que aprofunda a dificuldade de administrar os dois regimes jurídicos distintos.

Os servidores civis e militares submetem-se a regimes jurídicos diversos dadas as características distintas das atribuições que desempenham e a necessidade de disciplinas diversas com direitos e obrigações distintos para cada tipo de servidor, tendo como orientação a natureza diversa de suas atividades. O os incisos VI e VII do artigo 37 da Constituição Federal garantem aos servidores públicos civis o direito de greve e o inciso IV do artigo 142 da Carta proíbe aos militares a sindicalização e a greve.

Assim, no caso dos controladores de vôo temos servidores civis que fizeram uma greve sem regulamentação legal, como exige a norma constitucional, mas que têm direito, em tese, ao seu exercício. Já para os militares a greve é proibida pela norma constitucional, o que acirra as contradições existentes entre os dois regimes, não obstante trabalhem todos na mesma atividade, que funcionalmente coloca estes últimos em situação mais delicada do que os primeiros. Também haveria de ser mantido o atendimento de emergência, para preservar ao menos o direito de locomoção de emergência. A paralisação pura e simples da atividade, pelo seu caráter de essencialidade, sem qualquer plano emergencial durante a greve revela-se um procedimento inadequado.

O legislador deve aproveitar este episódio traumático para regulamentar o direito de greve do servidor público civil, fixando os limites e distinguindo atividades ou serviços essenciais dos demais, com providências eficientes à salvaguarda do direito da população mediante providências cabíveis à administração pública e aos grevistas. Quanto ao tratamento do tema relativo aos servidores militares, é preciso obediência à restrição constitucional, mas não se pode olvidar das garantias consagradas no artigo 1º da Constituição Federal, que são fundamentos do Estado democrático e referem-se à cidadania, à dignidade da pessoa humana e aos valores sociais do trabalho.

Deve-se, afinal, buscar, na medida do possível, a unidade de regimes jurídicos dos servidores no desenvolvimento de uma mesma atividade, a fim de evitar diversidade de tratamento e conseqüentes situações de crise.

Pedro Paulo Teixeira Manus é juiz vice-presidente administrativo do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 2ª Região, professor titular de direito do trabalho da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e autor do livro "Direito do Trabalho", publicado pela Editora Atlas

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações