Título: Saúde no abismo
Autor: Mader, Helena
Fonte: Correio Braziliense, 09/12/2010, Cidades, p. 37

O caos no sistema público é conhecido de todos: há poucos médicos, faltam medicamentos e material de consumo nos hospitais, e centros cirúrgicos têm até piolho de pombo. Cerca de 1,8 milhão de brasilienses dependem dessa rede falida

A história da família Carvalho resume a situação da rede pública de saúde do Distrito Federal. A dona de casa Maria do Socorro, 48 anos, espera há quatro meses por uma cirurgia para retirar um tumor da mama esquerda. Convive diariamente com o medo de a doença se agravar. Sua filha mais velha, Ana Paula, 24 anos, tem um nódulo no seio e, desde o início de outubro, aguarda o resultado de uma biópsia. O exame vai revelar se ela também tem câncer, mas a divulgação atrasou porque falta pessoal para digitar o laudo. A caçula da família, Patrícia, 14 anos, teve que amargar uma espera de mais de 15 horas e um périplo pelas emergências de três hospitais para conseguir atendimento. Com suspeita de meningite, a menina gemia de dores deitada em um banco na porta do Hospital Regional da Asa Norte, quando conversou com a reportagem, no fim de novembro.

As três mulheres moram no Riacho Fundo II e dependem do sistema público de saúde, assim como cerca de 1,8 milhão de brasilienses que não têm plano de saúde. Esses cidadãos que precisam recorrer aos serviços públicos são unânimes ao afirmar que o sistema está falido. ¿Fomos ao Hospital de Samambaia e mandaram eu levar minha filha ao Base. Peguei ônibus com a Patrícia quase desmaiando, mas me trouxeram de ambulância para o Hospital da Asa Norte e deixaram a gente na porta. Estou apavorada, com medo de ela morrer aqui, esperando médico¿, conta Maria do Socorro Carvalho.

A dona de casa teve câncer no seio direito, fez uma mastectomia e, pouco depois, outro tumor surgiu na mama esquerda. ¿É muito duro depender dos hospitais do governo. Se a gente tivesse dinheiro, pagaria médico particular para resolver tudo isso bem rápido e acabar com a agonia¿, acrescenta. A estimativa é que aproximadamente 20 mil pessoas aguardam na fila por cirurgias de várias especialidades, como oftalmológica, ortopédica e oncológica.

A longa lista de pacientes que precisam de operação se formou por conta dos problemas estruturais da rede (leia o quadro Diagnóstico na próxima página). As falhas começam na infraestrutura, já que faltam salas e muitos dos espaços para cirurgia estão sem condições de funcionamento. Às vezes, os procedimentos são suspensos porque não há materiais hospitalares básicos, como fios de sutura, catéteres e esparadrapos. Para piorar, é comum operações marcadas com muita antecedência serem desmarcadas por falta de médicos, como anestesistas ¿ uma das especialidades com maior carência na rede pública.

Revolta O rodoviário aposentado Francisco Pereira Batista, 53 anos, sofre de bursite e precisa de uma cirurgia no cotovelo para ter alívio das constantes dores. Mas, como os médicos não dão sequer previsão de quando ele poderá passar pela operação, o aposentado tem que imobilizar o braço esquerdo quando as dores se intensificam. ¿Eles dizem que tem gente em estado muito mais grave na minha frente e que é quase impossível que eu consiga fazer a cirurgia. Fico revoltado porque esse é o único jeito de resolver o meu problema¿, lamenta o morador de Samambaia.

Não bastassem os empecilhos estruturais e de pessoal, recentemente muitas cirurgias foram suspensas por conta de surtos de infecções. No Hospital de Ceilândia, técnicos identificaram uma infestação por piolho de pombos, o que levou ao fechamento do centro cirúrgico. Em 23 unidades públicas e particulares, pacientes apresentaram quadro de infecção pela superbactéria Klebsiella pneumoniae carbapenemase (KPC). O saldo da proliferação do micro-organismo foi a morte de 25 pessoas este ano (leia mais na página 39). Nem mesmo bebês prematuros escaparam das infecções. No Hospital Regional da Asa Sul, referência em pediatria e obstetrícia, pelo menos 11 recém-nascidos morreram em 40 dias em decorrência de um surto de bactérias hospitalares.

QUATRO PERGUNTAS PARA ROBERTO BITTENCOURT Professor de medicina da Universidade Católica de Brasília e especialista em saúde pública

Como deve ser feito o resgate do sistema público de saúde? O governador eleito Agnelo Queiroz já anunciou que vai comandar a saúde por pelo menos 100 dias logo depois que assumir, o que pode ser uma chance de ouro para começar a fazer esse resgate. Mas, para isso, é preciso montar uma agenda para otimizar o trabalho. Todos concordam que a situação da saúde é de calamidade pública e isso implica a definição de estratégias e abre possibilidades para o uso de instrumentos legais específicos.

Na sua avaliação, que problemas devem ser atacados logo no início da próxima gestão? O futuro governador terá que resolver pelo menos dois problemas urgentes, que são o Hospital de Santa Maria, atualmente sob intervenção, e o fechamento de leitos de terapia intensiva.

É possível conseguir bons resultados em curto prazo? Sim, é possível, desde que o Executivo pense em novas soluções de gestão. O governo pode, por exemplo, instituir uma fundação estatal de direito privado para implantar o Programa Saúde da Família. Hoje, esse projeto está praticamente abandonado. Com essas fundações, o GDF poderia contratar com agilidade, oferecendo aos profissionais uma remuneração diferenciada e contratações via CLT. Temos uma das maiores rendas per capita em saúde do Brasil, além de uma boa capacidade instalada. Mas isso exige um novo modelo, com contrato de gestão entre os entes públicos, para melhorar o desempenho.

A terceirização do Hospital de Santa Maria não trouxe bons resultados e causou polêmica. Não seria melhor mudar esse sistema? Mas as fundações estatais não têm nenhuma relação com as organizações sociais, que visam exclusivamente ao lucro. Essas podem até oferecer uma assistência melhor, mas consomem um volume de recursos muito maior, que acaba faltando para outras unidades. As fundações estatais não têm lucro, são apenas um modelo de gestão diferenciado.