Título: Palocci atribui queda à chance de suceder a Lula
Autor: Safatle, Claudia
Fonte: Valor Econômico, 13/03/2007, Especial, p. A16

Entre o dia que o chefe de gabinete da Presidência da República, Gilberto Carvalho, sondou Antonio Palocci, então poderoso ministro da Fazenda, sobre a possibilidade de o ministro ser candidato à sucessão de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2005, e sua dramática exoneração do cargo, no dia 27 de março de 2006, se passaram exatos oito meses.

Numa tarde de julho de 2005, Carvalho puxou Palocci para uma conversa no gabinete de Lula, que havia saído. "Palocci", disse ele, " o presidente está realmente pensando em não ser candidato. E nós vemos o seu nome como opção. O Ciro Gomes (à época ministro da Integração Nacional) também é uma alternativa, mas nós percebemos uma preferência pelo seu nome". Palocci reagiu: "Olha, Gilberto, vou falar francamente. Se o presidente não quiser mesmo disputar a reeleição, é melhor vocês pensarem no Ciro. Eu não quero de jeito nenhum", e completou: "Além disso, eu não tenho votos para ser candidato a presidente. Acho que vocês devem me colocar fora dessa. Isso me causa um prejuízo enorme".

Carvalho insistiu e a conversa não foi conclusiva. Mas a notícia de que Palocci poderia ser candidato à sucessão de Lula, poucos dias depois, foi publicada no jornal "Folha de S. Paulo". Ali, diz o ex-ministro e hoje deputado federal (PT-SP), teria início o calvário que culminou com sua demissão.

Passado um ano da sua exoneração, o ex-ministro conta no livro "Sobre Formigas e Cigarras", que chega amanhã às livrarias, sua versão sobre a crise que o colocou fora do governo, além de histórias que revelam bastidores da candidatura Lula, a formação do governo, divergências e momentos importantes do primeiro mandato de Lula. Um desses foi em junho de 2003, quando Lula se recusou a aprovar uma meta de inflação de 5% para 2005, insistiu em 4%, e concordou, a contragosto, com 4,5%.

Palocci acha que a matéria da "Folha" foi a senha para a oposição incluí-lo e triturá-lo na crise política que começou com a denúncia do "mensalão", feita pelo então deputado da base aliada, Roberto Jefferson (PTB-RJ). No livro, ele relata que anteviu o efeito que a notícia teria. "A oposição vai me botar no balaio da crise e eu vou virar pó", comentou com um assessor.

Ruy Baron/Valor Em fevereiro de 2006, um mês antes da saída: rusgas com Casa Civil e crise política constrangiam relação com Lula Não demorou muito, lembra, foi fisgado pela oposição numa trama de folhetim. Francenildo Costa, caseiro de uma mansão de lobby e de encontros, montada em Brasília por amigos do ex-ministro, depôs na CPI dos Bingos e afirmou que o então ministro era visto com freqüência na residência. Em depoimentos anteriores no Congresso, Palocci havia negado que tivesse comparecido àquela casa. Francenildo foi levado à CPI por um parlamentar do PSDB.

Pouco tempo depois, o sigilo bancário do caseiro foi quebrado, seu extrato apareceu na revista "Época", um crime até hoje não desvendado. O processo aberto contra ele está nas mãos do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. Mas os 11 processos advindos de denúncias de quando era prefeito em Ribeirão Preto foram arquivados.

Palocci chegou ao Ministério da Fazenda depois de ocupar o cargo de coordenador da campanha eleitoral de Lula. Durante a campanha, escreveu a "Carta aos Brasileiros", com a ajuda de Glauco Arbix, professor do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), e do jornalista Edmundo Oliveira, então editor de Economia do "O Estado de S. Paulo". O documento acabaria por representar a ruptura da candidatura Lula com o pensamento econômico até então dominante no PT.

Segundo ele, a decisão de elaborar a carta nasceu na Adega do Leone, um restaurante português de Ribeirão Preto. "Era o mês de maio de 2002 e a campanha pela sucessão de Fernando Henrique Cardoso ainda não começara oficialmente, mas um clima de crise se instalava nos mercados".

Era uma segunda-feira, dia em que a Adega fecha as portas. Mas o proprietário, Leone Rufino, preparou um almoço reservado. À mesa estavam, além do então candidato Lula e de Palocci, José Dirceu, Aloizio Mercadante, José Genoino, Zeca do PT e Guido Mantega. A idéia era produzir um manifesto de Lula à Nação onde o candidato se comprometia com algumas questões fundamentais para amenizar a crise, como cumprimento de contratos, compromisso fiscal, metas de inflação e câmbio flutuante.

"A maior dificuldade residiu na discussão sobre as metas inflacionárias em um eventual governo do PT", escreve o ex-ministro. As opiniões sobre inflação naquele grupo "se apresentavam de forma absolutamente distinta". Era praticamente consenso a necessidade de se estabelecer um compromisso de que, vencendo as eleições, o PT faria uma política fiscal dura. Lula, porém, não quis se comprometer com qualquer número e a solução, no texto, foi dizer "vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar seus compromissos". No dia 22 de junho de 2002, tendo em mãos a versão final da Carta, que seria lida naquele dia, num seminário do PT, Lula disse: "Este é o meu limite, Palocci".

Poucos dias antes do segundo turno das eleições de outubro de 2002, Luiz Gushiken, que depois seria ministro de Lula, comentou com Palocci: "Acho que o chefe vai querer você na Fazenda. Ele comentou isso comigo...". Lula, já reeleito, deixou claro em conversas com Mercadante, José Dirceu e Palocci que daquela trinca sairiam o ministro da Fazenda, o chefe da Casa Civil e o líder que controlaria a base aliada no Congresso. No início de dezembro, numa reunião na Granja do Torto, Lula bateu o martelo: " Palocci: é você!".

O anúncio oficial só ocorreu nos Estados Unidos quando, à saída de um encontro com o presidente George W. Bush, Lula anunciou a escolha de Palocci. Era 10 de dezembro de 2002 e, nesse mesmo dia, Henrique Meirelles, então eleito deputado federal pelo PSDB de Goiás, foi convidado e aceitou a presidência do Banco Central. "Chegamos mesmo a pensar na permanência de Armínio Fraga por alguns meses", conta Palocci. Fraga esteve com Lula por duas vezes no fim de 2002. Depois do segundo encontro, Lula comentou: "Às vezes, a gente constrói um enorme preconceito em relação a uma pessoa simplesmente por não conhecê-la". Mas Dirceu já havia declarado à imprensa que Fraga estaria fora do governo petista.

Na véspera do embarque para os EUA, Lula, Palocci e Mercadante, reunidos no hotel Sofitel, em São Paulo, decidiram, então, convidar Meirelles. No hotel em Washington, Palocci encontrou-se com Meirelles e lhe comunicou que Lula gostaria de tê-lo na presidência do BC. A primeira pergunta de Meirelles foi se Lula lhe daria autonomia para trabalhar. Palocci o levou para falar com Lula e Meirelles, então, fez a pergunta pessoalmente e o presidente respondeu: "Você vai ter toda autonomia para trabalhar. Nós confiamos em você", contou Palocci ao Valor.

Palocci faz elogios aos seus colaboradores, mas dois se destacam: Joaquim Levy, da Secretaria do Tesouro, e Afonso Bevilaqua, da diretoria de Política Econômica do Banco Central - os dois já saíram do governo. "Nunca tinha visto Joaquim e a primeira impressão que tive não foi das melhores. Ele falava pouco e para dentro, com a boca quase fechada. Era uma esfinge e se expressava por analogias muitas vezes incompreensíveis. Não desisti dele por pouco - na verdade, porque nas entrelinhas de suas falas deixava transparecer uma grande inteligência", conta. "Era Joaquim Levy quem deixava os mais ilustres ocupantes da Esplanada dos Ministérios de cabelo em pé. Muitas vezes eu precisava, com alguma diplomacia, correr atrás para consertar os estragos provocados pelas 'caneladas' distribuídas pelo Joaquim, que encarnava como ninguém o papel de guardião da chave do cofre", diz.

Bevilaqua assumiu o papel de "durão". Como diretor do BC ele era "pouco transigente no debate da política monetária e nas medidas adotadas". Acabou sendo o alvo predileto dos críticos da política de juros. O fato, porém, cita Palocci, é que ele "acrescentou uma grande credibilidade ao Banco Central" e os níveis baixos de inflação em 2006 "devem ser em parte creditados ao seu bom trabalho".

A "Carta aos Brasileiros" não foi, porém, suficiente para eliminar a crise. A taxa de câmbio se aproximou de R$ 4, a inflação disparou e, em bom português, o país quebrou. O então ministro da Fazenda, Pedro Malan, e o presidente do Banco Central, Armínio Fraga, foram a campo, durante a campanha eleitoral, e negociaram um acordo bilionário com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Um pacote de socorro de US$ 30 bilhões que o presidente Fernando Henrique Cardoso submeteu aos candidatos à sucessão.

Durante a transição de governo, uma missão técnica do Fundo veio ao Brasil. Da conversa, Palocci conta: "Dois pontos eram tidos como inegociáveis pelo FMI: o Brasil teria que cumprir o programa tal qual estava escrito e assegurar o aumento do superávit primário. Garanti que não havia risco de não cumprimento do programa, embora com nova abordagem e novo calendário. A definição sobre o superávit, porém, só aconteceria depois da posse do presidente". A equipe do Fundo foi embora descrente. Em janeiro de 2003, o governo elevou o superávit primário de 3,75% para 4,25% do PIB.

Nos meses seguintes, a área econômica iniciou um trabalho para atingir as metas estabelecidas, mas sem perder de vista o objetivo maior, que era liberar o país do FMI. Palocci conta passo a passo como o governo perseguiu essa estratégia. Em março de 2005, o Brasil encerrou o período de dependência do FMI. No fim do ano, o governo antecipou o pagamento de US$ 15,5 bilhões ao Fundo.

Palocci destaca, no livro, alguns momentos tensos dos primeiros meses de governo Lula, a luta contra a inflação e o surgimento do "fogo amigo", que começou com declarações do vice-presidente José Alencar contra a Selic. Na primeira reunião, em janeiro de 2003, o Comitê de Política Monetária (Copom) decidiu por um aumento de 0,5% na taxa, elevando-a para 25,5%. Em fevereiro, novo aumento, para 26,5%. O presidente apoiou as duras medidas de ajuste para o primeiro ano.

As divergências internas, porém, não tardaram a vir a público. Sobre a posição do então ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, o ex-ministro explica: "É certo que tivemos, sim, muitas divergências e dificuldades durante o período em que ele ocupou a Casa Civil e eu o Ministério da Fazenda". Mas garante que nunca rompeu com Dirceu e que este sempre lhe apoiou quando necessário.

Em março de 2003, Lula mostrou, pela primeira vez, desconforto com os rumos da economia. "Foi durante uma conversa descontraída no Alvorada. Ele estava aborrecido com as críticas sobre a política monetária. O governo nem sequer completara 100 dias e já se cobravam resultados como se estivéssemos no meio do mandato", conta Palocci. Nos quatro anos de governo todos criticaram o Banco Central. "A política de juros do BC foi, enfim, uma das poucas unanimidades nacionais do período: todos eram contra. Mas a equipe econômica resistiu por estar convencida de que, no fundo, o que contaria mesmo seriam os resultados concretos. Ou seja, inflação baixa".

Em maio, a inflação acumulada em 12 meses chegou a 17,2%. Os primeiros sinais de enfraquecimento da inflação só começariam a aparecer no fim de 2003. O primeiro ano do governo Lula terminou melhor do que se esperava.

A notícia ruim veio do PIB. "Os cálculos disponíveis em fevereiro de 2004 indicavam uma suposta queda de 0,2% no PIB de 2003, o que deixou o presidente enfurecido". Ele não escondeu a contrariedade: "Mas não dava para ser pelo menos 0,1% positivo? Um PIB negativo é uma dose forte demais", reclamou Lula. O IBGE só divulgou em novembro de 2004 que o PIB de 2003 havia crescido 0,5%. Em seguida, veio o resultado do 3 trimestre de 2004 - uma alta de 5%. A partir daí, "o clima melhorou e Lula passou a ser só otimismo".

Outro momento importante foi em meados de 2003, quando o governo tinha que decidir a meta para a inflação de 2005, penúltimo ano do mandato. Em junho de 2003, o IPCA acumulado em 12 meses ultrapassava a marca dos 17%. Na avaliação dos técnicos da Fazenda, Planejamento e do BC, fazer a desinflação exigiria custos econômicos elevados. Depois de intenso debate, a equipe decidiu sugerir ao presidente Lula a meta de inflação de 5% para 2005.

"Palocci, meu caro, como é que eu vou explicar para as pessoas que a minha meta de inflação para o meu terceiro ano de governo será de 5%? Não dá, meu caro...", reagiu Lula. E prosseguiu: "Eu passei toda a minha vida de líder sindical correndo atrás da inflação. Como vou encarar as pessoas e dizer a elas, agora que sou presidente, que a minha meta de inflação é de 5% ao ano?! Vamos baixar isso!"

Palocci insistiu nos 5%. Lula reagiu: "Não! De jeito nenhum! Cinco é muito, Palocci. Seja mais otimista, meu caro (...). Eu quero 4%". Palocci ainda tentou demover o presidente da idéia de uma forte desinflação. "Presidente, o senhor sabe o que significa uma meta muito apertada de inflação, não é?". Lula disse: "Eu sei que vai significar mais juros, Palocci. Isto está claro".

A decisão foi salomônica: 4,5% e as conseqüências dessa meta para 2005 viriam mais tarde. A primeira providência para cumprir a meta com rigor foi manter os juros elevados e redobrar a atenção do BC. Em junho, o Copom reduziu a Selic de 26,5% para 26% e esta seguiu em queda até atingir 16% em abril de 2004. Ficou estável até setembro, e a partir daí, voltou a subir até alcançar 19,75% em agosto de 2005.

"O bombardeio contra a política monetária ganhou força e os ataques vieram de todos os flancos, fazendo o debate assumir proporções quase insuportáveis", conta o ex-ministro. Mas a política de restrição monetária teve apoio da Fazenda. A estratégia dos críticos da política do BC, então, mudou: passaram a questionar duramente as metas de inflação para 2005. Mercadante verbalizou apoio a essa tese. Palocci levou o assunto o Lula, que disse: "Eu não vou aumentar a meta de inflação coisa nenhuma. Nós decidimos assim e continuo a achar que a nossa decisão foi correta. Esqueça esse assunto".

Em 2005, a área econômica, em meio à crise política, começou a discutir uma política fiscal de longo prazo e cortes de gastos. Questionada a respeito durante uma visita ao jornal "O Estado de S. Paulo", a ministra Dilma Rousseff, disse que aquela proposta era "rudimentar", criando um clima de beligerância com seus colegas da Fazenda e do Planejamento. "Era só o que faltava", pensou Palocci, conforme relata. "Não bastassem os ataques da oposição, agora o tiro de canhão vinha de dentro do próprio governo."

O ministro foi falar com Lula. Achava que Dilma "não teria feito um contraponto tão incisivo sem que o próprio presidente da República soubesse ou mesmo o desejasse". Lula, porém, disse que aquela polêmica não o interessava. "Disse a Lula não ter naquele momento nenhum ânimo para permanecer no governo. Aos jornalistas, disse que aproveitaria o feriado para pensar na vida".

Na volta do feriado, Palocci foi novamente a Lula. "Olha, presidente. Eu descansei e refleti bastante (...). Não vou lhe pedir demissão nem pressioná-lo, mas estou convencido que minha situação só vai piorar. Dentro e fora do governo. Talvez você deva refletir sobre minha substituição". A combinação de crise com a Casa Civil com a crise política "não vai dar certo", prosseguiu. E citou ao presidente três possibilidades para a sucessão na Fazenda: Murilo Portugal, Mercadante ou Guido Mantega.

"Lula ouviu quieto, pouco falou e pediu para eu ir trabalhar e voltar à noite". Palocci voltou e insistiu: "E nossa conversa, chefe?". Lula respondeu apenas: "Pare de onda, Palocci. Toque o seu trabalho..."

Em fevereiro de 2006, "uma importante liderança nacional, com mandato no Congresso", contou ao então ministro que o PFL o havia escolhido como foco. "Eles vão bater até você ter que deixar o governo porque avaliam que, se não atingirem a área econômica, nada vai abalar o Lula". Palocci perguntou se o PSDB apoiava essa decisão e seu interlocutor disse que sim.

E a crise política chegou a Palocci, num envolvimento ainda hoje inexplicado, com o vazamento do sigilo bancário do caseiro Francenildo. Em 27 de março de 2006, ele voltou a Lula. "Expliquei que não havíamos conseguido esclarecer o caso da quebra do sigilo bancário e que a situação minha e do presidente da Caixa Econômica Federal, Jorge Mattoso, tinha ficado insustentável". Palocci garantiu a Lula que não havia vazado os dados nem autorizado isso. Mas se sentia responsável. O presidente concordou. "No dia seguinte, eu compareceria à cerimônia de transmissão de posse do cargo ao novo ministro, Guido Mantega". Depois de três anos e 86 dias no comando da economia, ele deixava o governo.