Título: A violência em pauta
Autor: Tavares, Rebecca Reichmann; Csermak, Caio
Fonte: Correio Braziliense, 14/12/2010, Opinião, p. 19

Rebecca Reichmann Tavares Doutora em educação pela Universidade de Harvard e representante do Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (Unifem-ONU Mulheres Brasil e Cone Sul) Caio Csermak Bacharel em relações internacionais pela UnB

Nas últimas semanas, o Brasil assistiu à espetacularização da violência urbana. Conflitos entre policiais e o crime organizado no Rio de Janeiro tomaram a centralidade na pauta da mídia. Pese a gravidade do conflito e dos índices de violência urbana no Brasil, volta à tona um caso de violência muito recorrente no país, a de gênero: a condenação do ex-goleiro Bruno, referente à acusação de cárcere privado, lesão corporal e constrangimento ilegal contra Eliza Samudio.

Os números sobre a violência de gênero no Brasil assustam: pesquisa da Fundação Perseu Abramo mostra que 43% das mulheres já sofreram algum tipo de violência de gênero, ao passo que, segundo estudo do Instituto Zangari, 10 mulheres são assassinadas por dia no país. Entretanto, o enfrentamento à violência de gênero ainda enfrenta silêncios e barreiras, como debilidades na aplicação da Lei Maria da Penha, falta de alocação e execução de recursos públicos, julgamentos que reforçam estereótipos de gênero, falta de estrutura para o amparo psicológico e proteção da mulher ameaçada e/ou agredida e a vitimização do agressor.

Tal vitimização é perpetrada, inclusive, por responsáveis pela aplicação da lei, como na sentença proferida pelo juiz Marco Couto, da 1ª Vara Criminal de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, responsável pelo julgamento de Bruno no processo que corre na justiça fluminense. Como publicado no jornal Correio Braziliense, o juiz, mesmo condenando o réu, aventa a possibilidade de que Bruno teria sido vítima de Eliza Samudio, pois esta teria se aproximado e se envolvido com o jogador motivada por interesse financeiro.

Primeiro, o juiz parte do pressuposto de que são sempre as mulheres que procuram os jogadores de futebol, não o contrário. Todavia, sobram relatos, inclusive do próprio Bruno, sobre festas e orgias organizadas por jogadores e assessores, assim como de redes de prostituição que se formam ao redor de clubes de futebol, como no recente escândalo ocorrido com o jogador francês Franck Ribéry. Assim, do mesmo modo que mulheres buscam jogadores ricos e famosos, estes buscam mulheres dispostas a se envolverem com eles. Tirar a agência dos jogadores nesse processo é uma estratégia que permite, por um lado, vitimizá-los e, por outro, condenar as mulheres. Além disso, se Bruno consentiu ter relação sexual com Eliza, não se deve falar em enganos, pois o goleiro estava ciente dos riscos de gravidez envolvidos.

Outra questão é que condenar uma mulher por ter interesse financeiro em uma relação amorosa é usar como referência um padrão moral que prescreve que a mulher deve ser recatada e submissa. Em última instância, é vedar o direito da mulher ao sexo e ao prazer por qualquer motivo que não seja o da reprodução ou o do interesse financeiro.

Também recentemente, o fundador do site WikiLeaks, Julian Assange, foi preso sob acusação de violência sexual praticada na Suécia. A acusação contra Assange traz à tona o avanço alcançado pela Suécia na legislação contra violência de gênero, especialmente no que toca a violência sexual. Na lei sueca, se um homem se recusa a usar camisinha durante a relação sexual, isso configura crime de violência sexual. A lei sueca explicita, portanto, a preocupação em respeitar o direito da mulher em exercer a sua vontade, em exercer o direito de dizer ¿não¿, de ser autônoma com relação ao desejo masculino como estruturante de uma relação sexual ou amorosa.

Com financiamento do Instituto Avon, o Unifem-ONU Mulheres lançou em novembro dois portais na internet: Violência contra a mulher e Quebre o ciclo. As plataformas do www.quebreociclo.com.br estimulam a conscientização da juventude, especialmente estudantes do ensino médio e profissionais do direito e da Justiça. Estão disponíveis guias para educadores, conteúdos multimídia e informações sobre a ampla rede de parceiros para enfrentar a violência contra as mulheres e aplicar a Lei Maria da Penha. A iniciativa faz parte da campanha global Una-se pelo fim da violência contra as mulheres, convocada pelo secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon.

Para que no Brasil o combate à violência de gênero seja efetivo, é preciso que, além dos mecanismos legais necessários, a mulher seja respeitada enquanto sujeito de vontades, que a aplicação de qualquer lei não seja obscurecida pelo machismo institucional que permeia distintas esferas públicas e privadas, que as políticas públicas tenham perspectiva de gênero em sua formulação e implementação. Assim, a igualdade de gênero pode passar de recurso que adorna discursos para a melhoria real da vida das mulheres.