Título: A política do fardo fiscal
Autor: Amorim Neto, Octavio
Fonte: Valor Econômico, 02/05/2007, Opinião, p. A10

Um dos grandes problemas da economia brasileira, hoje, é a sua sufocante carga tributária. Isto é praticamente consensual, uma vez que nem os partidos governativos que patrocinaram o aumento vertiginoso da tributação desde 1994 defendem-na publicamente. O nível de arrecadação tributária de um país se explica por uma série de fatores sócio-econômicos. Mas a política também tem o seu papel. No caso brasileiro, quais são os nexos entre a nossa estrutura política e a política fiscal no seu sentido amplo, isto é, levando em conta não apenas as receitas governamentais, mas as despesas também?

Desde logo, deve-se eliminar a idéia, a princípio tentadora, de que a incúria de deputados e senadores, com a sua avidez pela liberação de verbas e as suas milhares de emendas individuais ao orçamento, tem algum peso significativo sobre nossos problemas fiscais. Minucioso trabalho de Argelina Figueiredo e Fernando Limongi mostra que a fatia representada pela execução financeira das emendas parlamentares nos gastos governamentais é mínima e em pouco afeta a agenda orçamentária do Poder Executivo. Se o tradicional suspeito - a irresponsabilidade fiscal dos congressistas - é, de fato, inocente, então, sobre quem deve recair a culpa política pelo asfixiante fardo fiscal?

A resposta é complexa e a melhor pista que temos aponta para um efeito indireto e não-antecipado do sistema partidário, caracterizado, desde 1991, por uma alta fragmentação. E não é mera coincidência o fato de ser justamente o começo da década de 1990 o momento em que a carga tributária começa a crescer de forma impressionante e a maior despesa do governo, os gastos com o INSS, inicia a sua subida aos céus. (Dados apresentados por Fabio Giambiagi revelam que a despesa do INSS, de 2,5% do PIB em 1988, irá para 8,1% do PIB em 2007). Como todos esses elementos se misturam?

Desde 1991, temos tido, em média, 19 siglas representadas na Câmara e aproximadamente oito partidos que realmente contam. Isso nos dá o duvidoso título de ostentar um dos parlamentos mais fragmentados do mundo. Porém, um grande número de partidos não leva per se ao aumento da carga tributária. O que a fragmentação partidária faz, em primeiro lugar, é impor a formação de governos de coalizão. Todavia, estes também não optam necessariamente pela elevação das receitas.

O que há, isto sim, de específico nos governos de coalizão é o fato de enfrentarem maiores dificuldades na implementação de ajustes fiscais e responderem mais lentamente a desequilíbrios orçamentários que os governos de apenas um partido. O que faz a ponte entre o perfil dos governos (monopartidário ou de coalizão) e a política fiscal é a coesão daqueles: governos de coalizão (menos coesos) tendem a produzir déficits maiores que governos monopartidários (mais coesos) porque os primeiros enfrentam um sério problema do tipo "quem fica com a batata quente na mão?" na hora de introduzir cortes nos gastos públicos.

-------------------------------------------------------------------------------- Governos de coalizão preferiram aumentar impostos a cortar gastos diante da necessidade de um ajuste fiscal --------------------------------------------------------------------------------

Na formulação clássica de Nouriel Roubini e Jeffrey Sachs, todos os membros de uma coalizão preferem algum corte no orçamento a continuar com grandes déficits, mas cada um deles tem interesse em defender a parte do orçamento destinada às suas clientelas políticas frente a medidas de austeridade. Na ausência de forte coordenação entre os membros da coalizão para produzir cortes nos gastos públicos, a solução de não cortar o orçamento será, provavelmente, a tomada. Mas a história não termina aqui.

Caso seja precária a situação orçamentária de um país regido por governos de coalizão, estes, sem dúvida, fazem ajustes fiscais. O problema reside no modo do ajuste. A experiência internacional - tal qual analisada por um dos grandes nomes da moderna economia política, Alberto Alesina - indica que os governos de coalizão preferem fazer ajustes mais por meio do aumento de impostos que pelo corte de gastos. Agora, sim, retraçar o caminho que conduz da estrutura política à pesada carga tributária no Brasil: a alta fragmentação partidária impôs a formação de governos de ampla coalizão, os quais, diante da necessidade de um ajuste fiscal causada, sobretudo, pelo aumento das despesas do INSS, preferiram aumentar os impostos a cortar os gastos, por conta de suas agudas dificuldades de coordenação política.

Eis o emaranhado político-tributário em que nos metemos. Ele se manifesta não apenas no plano nacional, mas também na Federação. Não esqueçamos que o Rio de Janeiro é o Estado que tem a assembléia legislativa mais fragmentada e a maior carga tributária do país. Não à toa, a sua economia encontra-se chumbada, em pandarecos, há anos, apesar de toda receita que extrai do petróleo.

Quais são as perspectivas para 2007-2010? O que fazer para sairmos deste emaranhado? Bom, é praticamente impossível vermos a redução da fragmentação partidária e o fim dos seus corolários políticos no próximo quadriênio. E dificilmente surgirão condições que permitam uma forte coordenação entre os partidos governativos a fim de introduzir amplos cortes nos gastos públicos. Mas há ainda uma esperança. Para fazer um ajuste fiscal que promova a redução dos gastos e, posteriormente, da carga tributária, o que passa pela reforma da previdência, é fundamental difundir os seus custos políticos entre todos os partidos. Isto significar envolver a oposição em um pacto fiscal de longo prazo, em linhas semelhantes ao do proposto pelo senador Jefferson Peres em 2005.

Dado o enorme capital político com que hoje conta Lula, ele se encontra em uma posição única para bancar esse pacto. Até o momento, o presidente tem-se revelado um exímio tático em batalhas defensivas de guerras de posição, como foi a que travou vitoriosamente a partir da eclosão do escândalo do mensalão. O seu desafio agora, para passar com um grande nome para a História, é mostrar-se também um excelente estrategista em batalhas ofensivas de guerras de movimento. Presidente, ao ataque! Um pacto fiscal, por favor.

Octavio Amorim Neto é professor de ciência política da Escola de Pós-Graduação de Economia (EPGE) da Fundação Getulio Vargas, no Rio de Janeiro, e autor de "Presidencialismo e Governabilidade nas Américas" (2006).