Título: Por uma política monetária mais flexível
Autor: Belluzzo, Luiz Gonzaga
Fonte: Valor Econômico, 02/05/2007, Caderno Especial, p. F2

Nos últimos 25 anos de baixo crescimento, a posição do Brasil no ranking econômico das nações em desenvolvimento foi abalada por mudanças tectônicas na geoeconomia global. As camadas dirigentes e dominantes aceitaram e proclamaram visões e interpretações superficiais sobre a natureza das transformações. Isso levou à adoção de regimes de política econômica incompatíveis com os rumos da dita globalização - na contramão do que pretextavam seus autores.

Esses equívocos de concepção e de estratégia não são cometidos solitariamente por presidentes da República ou ministros da Fazenda. Decorrem de uma correlação de forças perversa, hoje comandada pelo rentismo e pela finança parasitária, herdeiras da hiperinflação dos anos 80 e da pseudo-estabilização dos anos 90.

Esse "estado de expectativas" nos imobiliza e nos torna incapazes de aproveitar o momento internacional benigno, sobretudo a liquidez abundante que encharca os mercados financeiros globais. Já no final de 2003, ano inaugural do primeiro mandato presidencial, a economia mundial apresentava forte aceleração, puxada pelos Estados Unidos e pela China. A partir de então, a abundante liquidez financeira e o crescimento vigoroso do comércio mundial promoveriam uma formidável mudança no balanço de pagamentos brasileiro. Todos os indicadores de vulnerabilidade externa melhoraram sensivelmente nos últimos quatro anos: a relação dívida exportações caiu de 3 para pouco mais de 1, as reservas alcançaram mais de US$ 110 bilhões, o suficiente para financiar mais um ano de importação. As exportações brasileiras cresceram de forma impressionante: caminharam dos US$ 55 bilhões em 2000 para alcançar US$ 140 bilhões em 2006. O saldo comercial alcançou mais de US$ 44 bilhões em 2006 e a conta corrente é superavitária.

Isto foi proporcionado por uma conjuntura internacional excepcionalmente favorável. Ainda assim, o Brasil continuou a perder posições na disputa global pela geração de empregos e de valor adicionado na indústria manufatureira. Ficou para trás na corrida pelo crescimento industrial entre os países em desenvolvimento.

As reações ao PAC mostram claramente como se alinham essas forças em relação ao crescimento econômico. As críticas não foram endereçadas ao elo frágil do programa, ou seja, à falta de ousadia na definição de formas de financiamento inovadoras, capazes de levar em conta a conjuntura financeira global e o arsenal de novas modalidades de crédito e de cobertura de riscos desenvolvidas nos últimos anos.

Não vamos cair no conto moralista e inepto de que a finança é necessariamente contra o crescimento rápido. Muito ao contrário: Marx, Keynes, Schumpeter -- para não falar dos Rothschild, dos Morgan e dos Soros da vida - mostraram, na teoria e na prática, a importância decisiva do crédito e dos mercados de capitais para a potenciação do processo de acumulação de capital.

-------------------------------------------------------------------------------- Valorização é um chute no traseiro do investimento produtivo estrangeiro e já espanta os empresários brasileiros --------------------------------------------------------------------------------

Os chineses parecem ter lido com acuidade os autores mencionados. A experiência chinesa mostra o papel crucial dos bancos e do crédito na sustentação de taxas de crescimento elevadas, sempre guiados pela decisão política do Estado. Os economistas acadêmicos - americanos, europeus e candidatos a esses passaportes em outras partes do mundo - fazem soar o alarme da fragilidade dos bancos estatais chineses. Mas, a última oferta pública de ações destinadas a aumentar a participação privada nos bancos teve uma demanda três vezes maior. Parece que os práticos da finança global não se importam com a opinião de seus doutores.

Poucos países ditos emergentes têm uma combinação câmbio-juro tão hostil ao crescimento e tão favorável às formas estéreis e socialmente perversas de arbitragem e de especulação com os preços dos ativos. Em um ambiente de dólar fácil e barato, tais manobras suscitam a valorização da moeda brasileira.

É bom não esquecer: a outra face das reservas elevadas é a acumulação de passivos em moeda estrangeira nas bolsas, em renda fixa e, mais recentemente, aceleração do endividamento privado em moeda estrangeira e hot money. Além dessas inconveniências óbvias, a valorização é um chute no traseiro do investimento produtivo estrangeiro e já espanta os empresários brasileiros, convidados a mover suas fábricas para outras paragens. Assim, é cada vez maior o risco de regressão da estrutura industrial, a despeito da modernização defensiva dos setores que ainda sobrevivem à ofensiva dos manufaturados chineses.

No PAC, as medidas não só buscam romper os gargalos criados ao longo das últimas décadas na infra-estrutura como procuram alentar os setores com maior capacidade de gerar renda e emprego e fomentar o desenvolvimento tecnológico. O Brasil tem hoje um superávit primário cuja contrapartida é um déficit na infra-estrutura. Essa é uma conta que os economistas não costumam fazer.

Não recomendo que o governo mande às urtigas o superávit primário. Mas o balanço de pagamentos sob controle, acumulação de reservas e a inflação abaixo da meta permitem, no mundo de hoje, a adoção de uma política monetária mais flexível. O Banco Central executa uma política de câmbio e juro desastrosa e incompetente. É uma exceção grotesca, se nos comparamos a outros países que apresentam resultados piores no balanço de pagamentos, no déficit fiscal e na dívida pública, como, por exemplo, a Índia. A atual política de câmbio e juros, aliada a um regime tributário pesado e hostil ao crescimento, dentro de poucos anos transformará o Brasil em um exportador de commodities, com perda de substância na indústria manufatureira.

Nenhuma economia emergente, com forte concentração urbano-industrial da atividade econômica, do porte da brasileira, vai suportar, sem danos graves para o emprego, a formação da renda e a sustentação das políticas sociais - o amesquinhamento da indústria e dos serviços conexos. Neste caso, realmente, não há alternativa.

Luiz Gonzaga Belluzzo é economista.