Título: Fora do lugar, Selic desequilibra o câmbio
Autor: Guimarães, Luiz Sérgio
Fonte: Valor Econômico, 02/05/2007, Caderno Especial, p. F8

Se não parece mais haver dúvida sobre o fato de que a Selic "está fora do lugar", ainda não há consenso absoluto na mesma direção sobre a taxa de câmbio. Os analistas mais ortodoxos não admitem duas proposições fundamentais e aparentemente óbvias: a de que há uma sobreapreciação cambial danosa ao país e a de que é insuflada justamente pelo juro real excessivamente elevado. Como não consideram que é a Selic a responsável pela valorização do real, não convivem bem com a idéia de que a política monetária possa ser usada para impedir a queda do dólar. A Selic pode estar "fora de lugar" em relação ao combate à inflação, não do ponto de vista cambial. Não há lógica nisso: uma Selic errada produz uma taxa de câmbio igualmente errada.

"Câmbio fora do lugar é que nem girafa no campo de futebol em domingo de clássico", compara o professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, João Sicsú. "Não se sabe qual o lugar exato que deveria estar. Mas se sabe com certeza que ali não é o seu lugar". Há uma série de setores produtivos, cujo exemplo mais evidente, não único nem o último, é o calçadista, que exportava, que estava conquistando mercados, com qualidade e preços competitivos, mas que foi paralisado por causa exclusiva da valorização cambial excessiva.

A visão oposta a esta é fornecida pelo professor de economia da PUC-Rio, Márcio Garcia. "Será impossível, além de cruel, tentar convencer de que a apreciação não é excessiva a um exportador de produtos manufaturados intensivo em mão-de-obra que deixou de exportar quando a taxa de câmbio caiu abaixo de R$ 3,00", diz Garcia. No entanto, no seu entender, os economistas julgam se a apreciação é ou não excessiva comparando a taxa de câmbio real vigente com a taxa de câmbio real de equilíbrio. Esta não é observada diretamente, e precisa ser estimada econometricamente. "Sabemos que o aumento de nossas exportações, caudatário da elevação dos preços de commodities e da boa conjuntura da economia mundial, foi o principal responsável pela apreciação do câmbio real de equilíbrio, mas não sabemos bem quantificar o efeito", admite Garcia.

Refletindo um pensamento que se tornou comum entre a corrente mais ortodoxa, Garcia diz que é possível que a economia brasileira tenha de conviver com a atual taxa de câmbio real por longo período.

Ao mesmo tempo em que o esforço antiinflação é, como nos primórdios do câmbio fixo do Plano Real, firmemente ancorado no câmbio, a supervalorização acaba, com o tempo, produzindo efeitos contrários aos originais. Aos que ainda sustentam, contra todas as evidências, a opinião de que a Selic precisa continuar caindo parcimoniosamente porque a economia está sob ataque de uma perigosa inflação de demanda o professor Affonso Celso Pastore argumenta que se trata, na verdade, de uma mudança de preços relativos, não de uma inflação de demanda: a valorização do câmbio real faz com que os preços dos bens domésticos subam mais que os dos internacionais. Nada a ver com demanda aquecida a ser atacada pelo BC por meio de um aperto monetário. Na visão de Pastore, o que funciona contra o câmbio apreciado é a queda do juro real. As compras esterilizadas de dólares feitas pelo BC, ao inibirem a volatilidade - só há duas direções para a moeda americana, ou estabilidade ou queda -, contribuem para a valorização do real. Pastore considera que a proposta de redução de tarifas e de barreiras às importações amplia a possibilidade de crescimento econômico mas afeta negativamente as expectativas inflacionárias, criando um novo problema ao BC.

Sérgio Werlang, um dos criadores do sistema de metas de inflação brasileiro, acredita que um dos principais fatores de estímulo à valorização cambial é o descompasso entre as taxas de juros reais de longo prazo e as projetadas pela Selic. Como conseqüência da diminuição do grau de incerteza em relação à economia brasileira, o juro real de longo prazo caiu acentuadamente. As taxas das NTN-C, indexadas ao IGP-M, com vencimento em 2031, cederam de 8,15% no ano passado para 6,5% agora. E os juros reais das NTN-B, pós-indexadas ao IPCA, com resgate em 2045, recuaram de 8,20% para 7%. Em desalinho com esses retornos, a Selic de 12,50% projeta juro de 8,61% acima da inflação estimada para 12 meses, de 3,58%. Ou seja, a taxa real de curtíssimo prazo não acompanha o declínio da taxa de juros real de equilíbrio. Na opinião de Werlang, enquanto não houver uma convergência entre as duas taxas o dólar continuará sendo pressionado para baixo. Diante disso, o que deve fazer o BC na visão do seu ex-diretor? Acelerar o corte da Selic.

Paulo Tenani, estrategista do UBS Wealth Management, diz que enquanto a Selic não cair abaixo de 9% o dólar persistirá sofrendo pressões de baixa exercidas pelas forças que são capazes de dar direção à taxa de câmbio. Enquanto os superávits em transações correntes são responsáveis pela volatilidade do câmbio, são os ativos financeiros atraídos pela Selic os que fornecem a rota de alta do câmbio. O patamar de juro nominal de 9% equivale no plano doméstico ao rendimento que os investidores estrangeiros aceitam internacionalmente para comprar bônus brasileiros. Estes bônus pagam hoje yield de 6,1% por prazo de 8,5 anos. A diferença entre estes 6,1% externos e os 9% domésticos cobre todos os custos e riscos da operação direta no mercado interno. Como a Selic está em 12,5%, o BC paga um sobrepreço desnecessário contra turbulências. Se o capital externo recebesse 9% em aplicações feitas no Brasil estaria muito satisfeito, não desencadearia movimentos de fuga capazes de elevar o dólar e provocar inflação.

Maryse Farhi, professora-doutora do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp) e especialista em câmbio, juros e mercado financeiro, diz que o câmbio virou ativo financeiro no Brasil. O fato de o dólar continuar se desvalorizando apesar de o BC ter comprado todo o superávit exibido pela balança cambial em 2004, 2006 e o primeiro trimestre de 2007 invalida qualquer sugestão no sentido de que é o superávit comercial o responsável pela apreciação cambial. Nos três primeiros meses deste ano, para um saldo positivo de US$ 17,394 bilhões na balança cambial (todos os dólares que efetivamente entraram e saíram do país em suas diversas modalidades), o BC comprou US$ 21,9 bilhões. Mesmo assim, o dólar caiu no período 3,6%. Como o BC enxuga do mercado todo dólar físico que entra e mesmo assim a cotação cai, não adianta nada, na visão de Maryse, taxar com IOF o capital financeiro que vem aproveitar a Selic alta. A baixa é provocada pelos dólares "virtuais" que perambulam pelos mercados derivativos. Há formas mais eficientes de dissuadir as operações nos mercados futuros. Hoje, 80% das garantias dos negócios fechados pelo capital estrangeiro são depositados na BM&F em títulos públicos, facilmente emprestados de instituições nacionais. "Assim é fácil. Se os fundos externos fossem obrigados a trazer dinheiro próprio para cobrir as margens, o risco já seria outro", observa Maryse.

Os investidores estrangeiros são os principais players "vendidos" tanto no mercado de dólar futuro, quanto em cupom cambial e em juros futuros. A estratégia é lucrar duplamente: ao juro real de 8,5% projetado pela Selic, o capital externo agrega ao ganho a variação cambial negativa. Não interessa que o dólar suba no período de vigência do contrato futuro. A desvalorização do real poderia engolir o juro básico. Por isso, os estrangeiros "vendidos" no futuro não se resignam a assistir ao que acontece no mercado à vista de câmbio. Os hedge funds internacionais agem ativamente para derrubar a cotação à vista do dólar de forma a aumentar a sua lucratividade. Além das operações futuras envolvendo dólares "sintéticos", há outra ainda mais nociva ao câmbio iniciada e concluída lá fora mesmo. Trata-se do NDF (non-deliverable forward, ou contrato a termo sem entrega física). Por meio dele, como explica Márcio Garcia, um investidor estrangeiro pode auferir retornos análogos ao que teria caso comprasse um título público em reais, sem precisar de fato aplicar os recursos no país.