Título: Crescer para a pobreza continuar a cair
Autor: Totti, Paulo
Fonte: Valor Econômico, 02/05/2007, Caderno Especial, p. F12

"Crescemos no social o que a China cresceu na economia", diz o ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Patrus Ananias. Não é exagero. Acadêmicos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV) já no ano passado haviam constatado que a renda per capita dos 10% mais pobres da população brasileira cresceu numa velocidade de 8% ao ano entre 2001 e 2005. Essa taxa "é muito próxima daquela da China e maior do que a de 99% dos países", dizem Ricardo Paes de Barros, Mirela de Carvalho, Samuel Franco e Rosane Mendonça, em trabalho divulgado pelo Ipea em março último. Esse trabalho, uma análise dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE (Pnad), de 2005 - os últimos oficialmente conhecidos sobre a distribuição de renda no país - confrontados com os da Pnad de 2001, revela que, com crescimento anual de 6%, melhorou também a renda dos 20% mais pobres. Enquanto isso, a renda per capita geral no país oscilou positivamente 0,9% ao ano.

No período, o número de pobres (considerada linha de pobreza a de ingresso mensal, na época, de até R$ 162,59) caiu 3,8%. Era de 64,2 milhões de brasileiros em 2001 e subiu para 64,3 milhões em 2002. O pico foi atingido em 2003, com 67,4 milhões. Caiu para 64 milhões em 2004 e para 60,3 milhões em 2005. Já os brasileiros em situação de extrema pobreza (ingresso mensal, na época, de até R$ 81,29), diminuíram 5,6%. Eram 28,9 milhões em 2001; 27,8 milhões em 2002; 29,9 milhões em 2003; 26 milhões em 2004 e 23,3 milhões em 2005. A continuar esse ritmo, será possível reduzir à metade a extrema pobreza em seis anos, acentuam os pesquisadores. Os compromissos assumidos pelo Brasil internacionalmente - a chamada meta de desenvolvimento do milênio - fixavam um prazo de 25 anos para esse desempenho.

"A percepção dos mais pobres no Brasil é de estarem vivendo em um país com elevado nível de crescimento econômico, como a China", diz o estudo do Ipea. E complementa com a informação de que a renda dos 10% mais ricos (com queda de 0,3% ao ano, desde 1990) só lhes permite a frustrante sensação de viver num país de economia estagnada como a da Costa do Marfim.

Se subiu a renda dos mais pobres e caiu a dos mais ricos, houve redução da desigualdade na distribuição. O coeficiente Gini, geralmente aceito no mundo como medida da desigualdade - maior o número, maior a concentração - caiu 5% no período, de 0,596 para 0,561. "É uma revolução", diz o economista chefe do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, Marcelo Nery, o primeiro a destacar que a desigualdade estava em 2005 no seu patamar mais baixo dos últimos trinta anos. "Minha impressão é que a redução da desigualdade continuou de 2005 para cá, talvez sem a mesma velocidade, mas isso só a próxima Pnad vai confirmar", diz. Os resultados da Pnad 2006 serão conhecidos em setembro próximo.

As taxas de crescimento econômico da China são vertiginosas, mas seu Produto Interno Bruto (PIB), de US$ 2,3 trilhões, está longe de alcançar o dos Estados Unidos, de quase US$ 13 trilhões. Para isso, a China teria de acumular um crescimento cinco vezes maior. Está longe, também, do Brasil, apesar de sua vertiginosa e recente redução das taxas de desigualdade, alcançar patamares confortáveis de distribuição de renda. O Brasil ainda ocupa a oitava pior posição entre os 124 países acompanhados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Sem as mesmas pretensões chinesas de chegar ao nível dos Estados Unidos, mas pelo menos de aproximar-se de países com distribuição modesta de renda como o Uruguai ou a Botswana (renda per capita anual de US$ 8,2 mil e US$ 8,7 mil, respectivamente), o PIB brasileiro teria de crescer 4,5% ao ano e 2,9% a renda média per capita (hoje de US$ 7,79 mil). Com isso, a proporção de miseráveis cairia mais de 10%. E a taxa de desigualdade, mais de 30%. "Cada ponto de queda da pobreza tem impacto de três nos coeficientes de desigualdade", diz Nery. "Se o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) deslanchar, a pobreza pode cair 10%".

Basta, então, crescer para que em 2010, a taxa de desigualdade seja a mais baixa dos últimos 35 anos? Não é assim tão simples. O crescimento apenas não gera bem-estar social. Na China e na Índia, por exemplo, a desigualdade aumentou. E no Brasil dos anos 70, o crescimento a taxas de 10% ao ano mais cristalizou as desigualdades do que as amenizou.

Marcelo Nery e Ricardo Paes de Barros atribuem a queda recente da desigualdade à existência da rede de proteção social, que se foi formando na década passada, com a aposentadoria rural, a universalização do ensino fundamental e o Benefício de Prestação Continuada (um salário-mínimo a idosos com deficiência de renda familiar). E se completou em 2003, com o Bolsa Família. Foi este programa, dizem os pesquisadores, que realmente diminuiu a pobreza e a desigualdade. Nery reconhece que o aumento da formalidade no trabalho (carteira assinada) deu sua contribuição, mas descarta a influência dos recentes aumentos de salário-mínimo ("meus dados não mostram impacto direto do salário-mínimo na queda de desigualdade"). Para Nery, o Bolsa Família foi a novidade que mexeu com a "iniqüidade inercial e crônica". "É uma política de transferência de renda que mira as crianças, chega aos pobres. Esta é a década da queda da desigualdade, como a anterior foi a da queda da inflação".

Paes de Barros é enfático na defesa que faz de políticas públicas "focadas" nos pobres, como o Bolsa Família. "Se os pobres tivessem que escolher entre uma redução no coeficiente de Gini de 1% (o Bolsa Família contribuiu para a redução de 5%) ou um crescimento balanceado na renda per capita do país inferior a 2,4%, prefeririam a redução da desigualdade", escreveu o coordenador do estudo do Ipea. Num programa de televisão, Barros respondeu à crítica de assistencialismo feita ao Bolsa Família. "O governo dar bolsa para um acadêmico estudar em Londres não é também uma forma de assistencialismo?", perguntou. "O Bolsa Família assiste com comida 11 milhões de famílias e exige que as crianças estudem."

Nery e Barros não se dizem adversários do crescimento. Por isso situam, um, em 2,9%, e o outro, em 2,4%, o patamar inferior do aumento da renda per capita que considerariam adequado para mexer com a desigualdade. Mas sua militância na linha dos que defendem o Bolsa Família, sem revelar o mesmo entusiasmo pela causa do crescimento, desperta críticas entre acadêmicos da corrente desenvolvimentista.

No próprio trabalho do Ipea - a mais ampla, e também pluralista, análise da distribuição de renda já publicada - Carlos Salm, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), comparece com um capítulo de "leitura crítica" da interpretação que o Ipea oferece sobre a desigualdade. Salm não despreza o Bolsa Família, mas afirma que o crescimento sustentado, "se não é suficiente, será certamente condição necessária para garantir qualquer trajetória cujo objetivo seja a diminuição das desigualdades". O economista critica também a desqualificação do salário-mínimo como importante influência no combate à desigualdade. E cita o colega Carlos Medeiros, também da UFRJ, para quem o "Bolsa Família é um exemplo de política que não mexe diretamente com o mercado e, por isso, deve ser enaltecida pelo pensamento ortodoxo. Já aumentos no salário mínimo (uma instituição universal) são uma política que interfere com a formação de um preço fundamental, o do trabalho e, portanto, não só pode como deve ser ignorado segundo esse pensamento (ortodoxo)". Para Salm, a superestimação do Bolsa Família "contribui para que o debate se afaste do nosso maior desafio: superar o subdesenvolvimento".

Cláudio Salvadori Dedecca, do Instituto de Economia da Unicamp, no capítulo seguinte mantém o tom desenvolvimentista e afirma que "não se pode ser ingênuo quanto à impossibilidade de se manter o processo (de redução da desigualdade) sem que se restabeleça a trajetória do crescimento sustentado". Salm adverte para um fato e uma ameaça: se o país não crescer de forma mais acelerada, "logo bateremos nos limites fiscais que impedirão a continuidade das transferências de renda". Nery e Barros não discordariam, mas teriam ainda um bom argumento em favor do Bolsa Família. Ele seria mais barato do que a aposentadoria rural, o BPC e a própria política de aumento real de salário mínimo. Portanto, não seria o Bolsa Família o primeiro ameaçado por restrições orçamentárias.

Como se percebe, esse interessante debate acadêmico entre desenvolvimentistas e "ortodoxos" tende a acabar antes de 2010, ou talvez neste mesmo ano de 2007, pois o crescimento da economia parece confirmar-se.

Enquanto o debate não se esgota por falta do que debater, o ministro gestor do Bolsa Família e de outros programas oficiais voltados para a pobreza, Patrus Ananias, prefere lembrar Celso Furtado. O economista paraibano fazia uma fusão dialética de crescimento econômico e inclusão social para definir o que entendia por desenvolvimento. Patrus diz que as políticas sociais do governo seguem "o legado de Celso". "Os ministérios todos trabalham integrados, no que chamamos de transversalidade. O resultado é uma política de governo que mantém a estabilidade econômica, gera o crescimento, melhora o emprego e a renda." O ministro dá um exemplo, na prática, do que chama de transversalidade: " A criança não chega à idade escolar se não tiver alimentação, não estuda se não tiver saúde, não há saúde se não tiver saneamento básico, moradia, água potável e, depois da escola, não haverá emprego se o país não crescer. É tudo interligado."

Patrus diz que também a integração com governos estaduais e municipais ("com ausência quase absoluta da interferência de interesses partidários; acabou aquela coisa de cada político ter seus próprios pobres e deixar os outros ao desamparo") permitiu ao Bolsa Família cumprir a meta de assistir 11,1 milhões de famílias (25% delas no semiárido nordestino; 63% em regiões urbanas). "Agora é consolidar e ampliar os horizontes". Uma proposta de ampliação, relacionada com o Bolsa Família, já foi entregue ao presidente Lula. Trata-se da correção pelo INPC, calculada desde outubro de 2003, das doações do Bolsa Família. Hoje, uma família com renda mensal per capita de até R$ 120, recebe R$ 50 e mais R$ 15 por filho (no máximo três) de até 14 anos completos que freqüente a escola (85% de presença) e se submeta às vacinações recomendadas pelo Ministério da Saúde (a mulher, grávida, é obrigada a fazer exame pré-natal). A mesma proposta amplia para 17 anos completos a idade dos jovens que continuem estudando. A ampliação do benefício está no orçamento do MDS para 2007: R$ 8,7 bilhões. O programa começou em 2003 com orçamento de R$ 3,36 bilhões e atendeu, nesse ano, 3,6 milhões de famílias.

Uma idéia ainda em estudo é o de um auxílio para crianças de até sete anos que freqüentem a pré-escola. "Precisamos antes assegurar com o ministério da Educação, secretarias e prefeituras, que existam pré-escolas para atendê-las como estabelece a nova lei do Fundeb", diz o ministro.

"Isso quer dizer que em 2010 no Brasil haverá mais justiça social do que agora? Essa é a meta do presidente Lula: erradicar a fome, a desnutrição e a pobreza extrema. E será possível? Parecia impossível tirar nove milhões da pobreza..."