Título: O caminho é desenvolver e preservar ao mesmo tempo
Autor: Chiaretti, Daniela
Fonte: Valor Econômico, 02/05/2007, Caderno Especial, p. F11

Duas faces bem distintas do meio ambiente tornaram-se simbólicas este ano. A primeira é a do filhote de urso polar Knut, brincalhão e desamparado, no zoológico de Berlim. A outra é a dos bagres do rio Madeira, que poucos sabem ao certo que cara têm e muitos têm a impressão que deve ser indigesto. O urso fofinho comoveu meio mundo e a causa teve adesão e simpatia instantâneas - assim como a febre de plantar árvores para neutralizar carbono ou incorporar ao marketing o conceito de desenvolvimento sustentável. Já os bagres suscitam reações explosivas e controversas - assim como o desafio que o país tem de crescer e a necessidade de se desenvolver a partir dos seus recursos naturais. Não é um caminho fácil, nem romântico e nem ingênuo. Este debate, que costuma emergir com freqüência do Planalto, e ocorre no mundo todo, está só nos primeiros rounds.

"O desafio que o Brasil está enfrentando não é uma questão brasileira. Esta equação não é verdadeira. O dilema de crescer com sustentabilidade é planetário, não é um problema só do Brasil", reage João Paulo Capobianco, secretário-executivo do Ministério do Meio Ambiente. "Qual o desafio de um país como o Brasil?", questiona. "É aprender a escrever, escrevendo. É diferente da Europa, que se desenvolveu devastando e agora trabalha nos seus passivos ambientais. Trata-se de um desafio civilizatório novo. Nenhum país fez isso ainda."

É disso que se tratava a proposta da ministra Marina Silva ao assumir a pasta do Meio Ambiente no primeiro mandato do presidente Lula. A acreana de fama internacional colocou a idéia da transversalidade sobre a mesa. A intenção era que um olhar ambiental estivesse presente nas decisões estratégicas de todos os ministérios. O discurso naturalmente embutiria conflitos. Nesta investida, a ministra ganhou e perdeu. Foi voto vencido na discussão dos transgênicos e agora não faz segredo que se opõe à ressurreição da área nuclear que setores do governo pretendem empreender. Mas vem ganhando pontos na aplicação do princípio no caso da Amazônia.

Na discussão da pavimentação da BR-163, estrada que vai de Cuiabá a Santarém, produziu-se um plano para fazer da operação uma via de desenvolvimento sustentável e não de devastação. A estrada corta a floresta. Pavimentá-la opôs os produtores de soja (que a viam como artéria fundamental para escoar seus grãos), a ambientalistas e alguns pesquisadores (que temiam que o corredor faça a Amazônia sangrar). Catorze ministérios foram envolvidos na iniciativa, uma das questões mais nervosas do passado recente. Na área de influência da rodovia foram criadas mais de 10 milhões de hectares de unidades de conservação e montado um plano de manejo. A incógnita, agora, é como caminhará este processo - e em que ritmo, já que a licença de instalação está para ser concedida pelo órgão licenciador, o Ibama, e por aquelas bandas, a pressão para desmatar é enorme.

O ícone mais recente deste embate está precisamente no habitat dos bagres. São as usinas de Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, em Rondônia, que o consórcio Furnas-Odebrecht luta há quase quatro anos para colocar de pé, mas que até agora só produziram toneladas de papel e de polêmica. É um projeto de última geração, com reservatórios a fio d'água, turbinas-bulbo e previsão de investimentos de R$ 20 bilhões. Nada a ver com Balbina, que inundou um mundo de floresta e deixa Manaus sem energia. As usinas do Madeira produzirão 6.450 MW e, quem defende o projeto, garante que significará emprego e renda. Santo Antônio e Jirau representam um passo importante para tirar do país a ameaça de novo apagão elétrico em 2012 e perseguir as metas de crescimento pretendidas pelo governo e pela sociedade.

Este é um lado da história. O outro trouxe os bagres à tona. Eles são o sustento de 15 mil ribeirinhos e correm risco com o projeto. As usinas seriam implantadas em um rio de perfil hidrológico pouco conhecido, que nunca foi barrado, e carrega mais sedimentos que todos os outros da bacia amazônica. Quem teme a investida sugere que as barragens podem ter o efeito de encher uma banheira e ir adicionando a ela tanto água como areia. O resultado é que transborda. No caso do Madeira, isso pode significar inundar território boliviano. Nas cenas mais recentes deste imbróglio, os técnicos do Ibama emitiram um parecer expondo suas dúvidas e pedindo novo estudo de impacto ambiental, o que o então diretor de licenciamento do Ibama, Luiz Felippe Kunz, não acatou. E surgiu um novo estudo, encomendado pelo Ministério das Minas e Energia a um expert renomado que diz que não há risco de nada transbordar. Enquanto não se colocar ponto final no drama, os peixes bigodudos permanecerão no colo do presidente Lula.

É por isso que o processo de licenciamento é sempre uma questão espinhosa - e foi daí que se cunhou outra expressão, a "trava ambiental" que implicaria no crescimento do Brasil. Uma análise das seis obras fundamentais ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que aportaram no Ibama, indica as várias paralisações efetuadas pela Justiça. Na usina de Belo Monte, o processo estancou no primeiro passo; na de Estreito, levou seis anos para desenrolar e quando as obras estavam para iniciar, foi brecado de novo. Percurso mais tranqüilo foi o da Transnordestina. Os trabalhos da ferrovia já começaram - mas ali o empreendimento avança devagar porque a desapropriação de terras é lenta.

"O licenciamento ambiental é por natureza conflituoso", diz Capobianco. "Tem o lado do empreendedor, que calcula o projeto querendo retorno em prazo mínimo, e o outro, querendo condicionar o empreendedorismo às condições ambientais. Este conflito é diário e é natural que seja assim." Os capítulos mais recentes desta trincheira têm sido ocupados por membros do setor elétrico. "A necessidade de energia elétrica é real, do país", prossegue Capobianco. "Quem trabalha com esta agenda está operando com o interesse público. E nós, que trabalhamos no licenciamento, estamos operando na preservação ambiental, para que ela não ocorra de forma inadequada. São dois atores absolutamente legítimos."

Nenhum ambientalista sério propõe que o Brasil se transforme num país onde a população seja condenada ao subdesenvolvimento. Assim como nenhum político ou empreendedor sério quer, da biodiversidade, uma vaga lembrança. Mas há muita discórdia no mundo sonhado entre estes dois pólos. A própria idéia de discutir como compatibilizar crescimento com ambiente pode partir de premissas falsas. "Antes tem que discutir o crescimento", aponta José Eli da Veiga, professor titular do departamento de Economia da Universidade de São Paulo, um crítico das limitações do PIB como medida de riqueza e desenvolvimento. "Não há nada de linear entre crescimento e desenvolvimento", diz ele. A questão tem várias facetas, e a ambiental está embutida nela. O caso clássico, lembra, é o da Indonésia, que cresceu a taxas chinesas exaurindo suas florestas. O PIB de lá registrou aumentos consideráveis, mas a metodologia do índice não prevê qualquer dedução que reflita a depreciação do capital natural. Índices que mostrem a sustentabilidade de um país ainda são poucos e não maduros. "Como se dá preço para um manguezal?" reflete o professor. "Ainda está difícil sair este caminho."

O debate, de qualquer modo, evoluiu muito desde a conferência internacional de Estocolmo, em 1972. Foi ali que se fez, pela primeira vez, a conexão entre as atividades do homem e o reflexo no ambiente, cunhando-se o termo "ambiente humano" - inter-relação que assumiu proporções perversas este ano, em fevereiro, na divulgação do primeiro resumo do relatório 2007 do IPCC, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, da ONU. Mas a expressão desenvolvimento sustentável já tem 20 anos, vem do relatório Brundtland, e ainda não tem consenso. "A condição para se conseguir superar o impasse é esquecer este tipo de raciocínio: que é preciso combinar o aspecto sustentável do ambiente com o aspecto imprescindível do crescimento do país", diz Roberto Smeraldi, diretor da ONG Amigos da Terra - Amazônia Brasileira. Como assim? "Ou se entende que não é uma coisa ou outra, que se trata de uma coisa só, ou não se sai deste beco."

Para ele, não se trata de uma lógica etérea. "Ou se incorpora o patrimônio natural na estratégia de crescimento, ou sempre se terá que fazer esta conta: é mais interessante crescer 1% e destruir 200 km2 ou proteger 200 km2 e continuar parado? O raciocínio tem de ser: como crescer a partir dos 200 km2." É a transformação do recurso natural em capital natural. Encontrar uma maneira de extrair renda nas áreas que se quer preservar, usando-as para turismo, para gerar créditos de carbono, para investir na indústria da biodiversidade, para erguer um parque eólico.

"No Brasil, coexistem sempre os extremos. Tem o zero de atendimento em hospitais públicos ao lado de centros cirúrgicos de excelência", prossegue Smeraldi. No ambiente, diz, é assim também. Se de um lado o Brasil tem dificuldade em preservar a Amazônia - onde 80% do desmatamento é ilegal -, também tem uma das experiências mais inovadoras em certificação ambiental, em que é líder mundial. São 3 milhões de hectares de florestas certificadas.

E para acender a luz no futuro, faz como? A agenda ambiental sugere racionalização do consumo de energia, pequenas centrais hidrelétricas, maior atenção à energia eólica, repotenciação das termoelétricas, ampliação do uso de energia solar. A linha é pelo consumo consciente, maior eficiência na geração e ampliação do leque das energias alternativas. "O dilema entre desenvolvimento e ambiente é uma falsa questão", diz Thomas Fatheuer, diretor-executivo da Fundação Heinrich Böll, sediada no Rio e ligada ao movimento e ao partido verde alemães. "A questão deveria ser qual desenvolvimento se quer para um horizonte de 20, 30 anos." Segundo Fatheuer, este questionamento não leva a sério os conhecimentos recentes, que colocam a mudança climática como algo grave, que afetará do cotidiano à economia. "Os novos projetos deveriam pensar este aspecto, o princípio da precaução recomenda. Já não são mais cenários de cassandras ambientalistas."

Não que a Alemanha, uma das sociedades onde a temática ambiental é paixão disseminada há anos, esteja alheia às contradições que isso significa. A outra paixão nacional são os carros, de preferência, potentes e velozes - se emitem mais, paciência. Mais madura é a discussão em torno da energia nuclear, tão atual em tempos de aquecimento global. Quando os sociais-democratas e os verdes propuseram que o país deixasse de construir novas usinas nucleares na Alemanha, os críticos reagiram à decisão dizendo que ela significaria o "apagão" alemão. Não aconteceu. Hoje o país cresce com uma matriz energética que mescla carvão, nuclear e eólica. Nem mesmo os conservadores da CDU recolocam o tema na pauta. Mas discute-se, sim, frente à questão climática, como prolongar a vida útil das usinas nucleares já existentes.

As ameaças do clima aterrissam com impacto no governo Lula. Nas recentes mudanças do MMA criou-se uma secretaria específica de olho no tema e desmembrou-se o Ibama. Um novo instituto terá que cuidar das 288 unidades de conservação do país (área que é mais que o dobro do Estado de São Paulo), gerenciá-las e transformá-las em ativos econômicos. O Ibama, a julgar pelo convite feito ao chefe da Polícia Federal, Paulo Lacerda, promete endurecer a fiscalização. E repetir as megaoperações que a PF realizou na Amazônia, quando prendeu quase 400 pessoas, incluindo funcionários do Ibama.

O licenciamento, espera-se, também deve ser agilizado. Está no Congresso Nacional a proposta de regulamentação do artigo 23, da Constituição, que pretende tornar claro quem deve decidir sobre a viabilidade ambiental de projetos municipais, estaduais e federais, e fechar brechas que dão margem a ações judiciais e emperram a carruagem. "O licenciamento está supervalorizado", diz Luiz Felippe Kunz, diretor de licenciamento do Ibama até a mudança. "Há demandas que são de governo, mas de responsabilidade de outros órgãos, e que são feitas ao Ibama. Temos de dar decisão para tudo, sem ter mandato para isso", reclama. "Costumo dizer que o licenciamento é um processo que, quando a gente acerta, desagrada a todos por igual. O empreendedor diz que exigimos demais, e os que são contra a obra, acham que o Ibama se vendeu." Outro projeto, feito em caráter pessoal por Jerson Kelman, o presidente da Aneel, a Agência Nacional de Energia Elétrica, sugere retirar do Ibama a decisão final sobre o licenciamento de empreendimentos estratégicos e passá-la a um conselho de ministros ou ao presidente da República.

A visão de que o país tem que se desenvolver com sustentabilidade ainda não é consagrada dentro do governo, opina o deputado federal Fernando Gabeira (PV). "O próprio presidente da República oscila. Reclama do bagre, mas faz propaganda do biocombustível como algo que atenua os problemas ecológicos do mundo", continua. "É um comportamento que expressa, em parte, o de alguns empresários que se irritam quando vêem no ambiente um obstáculo para os seus lucros, e se entusiasmam quando enxergam uma possibilidade de ampliar os ganhos", diz. Sua esperança é que se trate de um movimento pendular com data de validade. "A ambivalência é algo difícil de eliminar no momento. Só o avanço do processo é que vai mostrar que a sustentabilidade é a melhor forma de crescer." E que é um caminho sem volta.