Título: O alvo é criar uma indústria nacional
Autor: Totti, Paulo
Fonte: Valor Econômico, 02/05/2007, Caderno Especial, p. F13

Entre as muitas cerimônias oficiais a que altos funcionários são obrigados a submeter-se, há uma que especialmente agrada ao sanitarista carioca de 55 anos, José Gomes Temporão, recém-empossado ministro da Saúde: a inauguração de fábricas de vacinas. O ministro cumpriu esse agradável compromisso na quinta-feira, 26 de abril no Instituto Butantan, de São Paulo, quando inaugurou a primeira fábrica brasileira de vacinas contra a gripe humana - a primeira também no mundo ao sul do Equador. E prometeu voltar ao mesmo local no ano que vem para dar a partida da linha de montagem de outro tipo de vacina, desta vez contra o vírus H5N1, a gripe aviária.

No ano que vem, o ministro quer estar em Goiana, na Zona da Mata de Pernambuco, a 60 quilômetros de Recife, para a inauguração não de uma fábrica de vacinas, mas da Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás), dedicada ao fracionamento de plasma. E, nesse ínterim, voltará muitas vezes ao BioManguinhos, da Fundação Instituto Osvaldo Cruz, no Rio, onde começou sua carreira de médico pesquisador, para acompanhar o desenvolvimento de vacinas e testes para diagnósticos de doenças como malária, dengue, aids, que darão lugar a novas inaugurações de fábricas até o final do governo em 2010.

Não é que Temporão tenha predileção compulsiva por corte de fitas. No intervalo entre a cerimônia no Butantan, um aguaceiro, um congestionamento, e o atraso de seu vôo no regresso a Brasília, o ministro disse em rápida entrevista ao Valor, que o atual governo, por mais esforços que faça na aplicação de políticas de inclusão social, ainda precisa superar uma "vulnerabilidade": a exagerada dependência externa na produção de imunobiológicos destinados à saúde pública. "Ainda dependemos de importações e monopólios de patentes", disse o ministro. O déficit setorial brasileiro, segundo o ministro, era de US$ 600 milhões no final dos anos 80 e, em 2005, chegou a US$ 5 bilhões. Esse aumento de dependência encarece o que o ministro chamou, na posse, de "produção da saúde no Brasil" e precariza a luta "contra o sofrimento, a dor e a morte" de milhões de brasileiros.

Criar um complexo industrial da saúde no Brasil é a proposta que Temporão já apresentou ao presidente Lula e para cuja execução, segundo ele, será necessário o empenho conjunto de outras áreas do governo, como os ministérios de Ciência e Tecnologia e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio e, mais do que tudo, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), onde está o dinheiro para o financiamento. Se depender do ministro, os próximos quatro anos serão dominados por esse tema na área da saúde. E também, certamente, pela resistência à recorrente pressão da ala fiscalista do governo, Ministério do Planejamento à frente, para retirar da Constituição o dispositivo que obriga a União a investir na saúde, a cada ano, um valor igual ao investido no exercício anterior mais a variação do Produto Interno Bruto (PIB).

Como já acontece na China, na Índia e na Tailândia, o país buscará a auto-suficiência na produção de vacinas e medicamentos contra a aids, a hemofilia e outros males que, por sua rentabilidade, despertam a atenção dos grandes produtores mundiais, e também contra as chamadas "doenças negligenciadas" - de pacientes pobres, um mercado pouco atraente para a iniciativa privada - como malária, leishmaniose, hanseníase e tuberculose.

Obviamente, com esse propósito o ministro enfrentará oposição interna - não muito grande, a julgar pela pacífica aprovação pelo Congresso da criação da Hemobrás em 2004 e da ameaça de quebra de patentes do medicamento Kaletra, do laboratório Abbott, em 2005 - e a contrariedade da indústria internacional. Uma queda de braço com as multinacionais em torno dos anti-retrovirais, usados na profilaxia de infecções oportunistas como a aids, já ocorreu em 1999 e 2005, quando os então ministros da Saúde, José Serra e Humberto Costa, respectivamente, ameaçaram quebrar patentes e forçaram os laboratórios a baixar os preços. Temporão quer usar o peso do governo como grande comprador (50% do mercado médico-hospitalar; 25% do mercado farmacêutico) para provocar a queda dos preços ou a concordância dos laboratórios em transferir tecnologia (a fabricação de vacinas no Butantan é conseqüência da transferência de tecnologia da européia Sanofi/Aventis-Pasteur).

O primeiro episódio dessa nova batalha está sendo travado exatamente nesta semana, quando expira o prazo dado pelo ministério à americana Merck Sharp & Dohme para baixar o preço do Efavirenz, um dos 15 integrantes do coquetel contra o HIV - sete deles já produzidos em Manguinhos. Se não houver acordo, o ministério dará uma licença compulsória para a BioManguinhos fabricá-lo, numa quebra de patente tolerada pela Organização Mundial do Comércio (OMC).

Segundo o ministro, com Manguinhos, Butantan, Hemobrás e outras iniciativas a serem conhecidas em breve, o Brasil está preparado para esse salto de produção. No Butantan, vinculado à Secretaria da Saúde São Paulo e com apoio financeiro do ministério, serão produzidas 40 milhões de doses de vacinas contra a gripe, o suficiente para atender gratuitamente toda a população de idosos (15 milhões atingidos pela campanha de vacinação deste ano) e exportar o excedente para América Latina, África e Europa. A vacina contra a gripe aviária também será a primeira produzida no hemisfério Sul - cinco países têm condições de fabricá-la no mundo - e, além de proteger a produção avícola nacional, se destinará à exportação. Já a Hemobrás, produzindo os hemoderivados albumina, imunoglobina, Fator VIII e complexo protrombínico, a partir do fracionamento de sangue obtido no Brasil por meio de doações, atenderá três quartos das necessidades brasileiras de tratamento, entre outras, da hemofilia, doenças graves do fígado e deficiência imunológica. O terço que falta para a auto-suficiência seria alcançado com outras iniciativas, entre as quais as do governo de São Paulo de também criar a sua fábrica de hemoderivados.

"A indústria da saúde", diz Temporão, "é a que mais produz inovação e riqueza no mundo, com a vantagem, ao contrário do que acontece, por exemplo, com os bancos ou o setor automotivo, de incorporar tecnologia e ao mesmo tempo ampliar empregos. E são empregos de alta qualificação".

Familiarizado com o ministério, pois nele trabalhava como secretário de Atenção à Saúde desde 2005 (antes foi presidente do Instituto Nacional de Câncer, Inca), poucas mudanças devem ser esperadas na gestão de Temporão nas áreas do Sistema Único de Saúde (SUS), controle do tabagismo, transplantes - "são de excelência reconhecida internacionalmente e nelas o esforço de aprimoramento é permanente".

"E o atendimento nos hospitais, nos postos do SUS"?

"É um problema de gestão, localizado nas grandes cidades, que precisa ser encarado e resolvido. O atendimento é ruim na recepção, mas lá dentro (dos hospitais) é eficiente. Nas cidades do interior, quase não há queixas. Chamo a atenção para o trabalho do ministério na área da saúde da família nos municípios de menor IDH (Índice de Desenvolvimento Humano, apurado pelo Plano das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Pnud). As pesquisas indicam que esse programa tem peso mais forte na saúde das pessoas do que o saneamento básico e a própria educação da mãe."