Título: Democracia não é tudo
Autor: Brittan, Samuel
Fonte: Valor Econômico, 01/05/2007, Opinião, p. A13

Winston Churchill é freqüentemente citado como tendo dito que a democracia é um sistema muito ruim, mas que todos os outros são piores. A última parte de sua frase é recebida com aclamação quase universal, mas a primeira não é suficientemente ponderada. No mínimo, democracia exige eleições majoritárias. Nesse aspecto, porém, deparamo-nos com um problema imediato. Uma maioria tem um significado nítido somente se existirem apenas dois candidatos ou duas políticas possíveis. Do contrário, corremos o risco de nos depararmos com "paradoxo eleitoral" descoberto pelo marquês de Condorcet, pensador francês do século XVIII.

Imagine que haja três candidatos ou políticas, A, B e C. Os eleitores podem preferir A a B, B a C, mas C a A. Tudo, então, depende da ordem na qual as votações são realizadas. Experimentados presidentes de comissões sabem perfeitamente disso. Numerosas tentativas já foram ensaiadas para contornar esse paradoxo. Mas nenhuma teve acolhida generalizada. Com efeito, Kenneth Arrow, um economista político contemporâneo, recebeu um Prêmio Nobel por demonstrar a inexistência de uma regra de decisão que possa satisfazer os cânones amplamente aceitos de justiça.

Uma definição prática de sistema eleitoral justo seria aquele no qual eleitores podem expressar suas verdadeiras preferências sem a intromissão de variáveis táticas. Seja quem for eleito para a presidência da França, o nome vencedor será a primeira opção de no máximo 31% ou 26% do eleitorado. Na primeira rodada havia 12 candidatos. Mas um eleitor racional não se limitaria a simplesmente escolher seu candidato preferido. Imagine que seu principal objetivo fosse impedir que Jean-Marie Le Pen fosse para o segundo turno, como conseguira em 2002. Nesse caso, os votos em quaisquer dos oito candidatos secundários criaria o risco de ajudar o candidato à Frente Nacional a ficar entre os dois mais votados.

Agora imagine a posição de um adepto do candidato centrista François Bayrou. Se seu principal objetivo fosse assegurar reformas econômicas semi-liberais, o melhor que poderia fazer seria votar em Nicolas Sarkozy para deter o avanço de Ségolène Royal. Mas se estivesse alarmado com as tendências autoritárias de Sarkozy (que foi fotografado num cavalo branco), ele bem poderia ter votado em Royal como a melhor maneira de conter Sarkozy.

Há, como sabemos, muitos outros sistemas de votação. Existe o voto alternativo, no qual o eleitor pode revelar suas preferências segundo uma ordem. Um sistema similar baseia-se na realização de um número de sufrágios sucessivos, nos quais é excluída progressivamente a opção menos favorecida em cada rodada. Esse é, em princípio, o sistema usado na eleição do líder e vice-líder do Partido Trabalhista britânico. Na prática, depois da primeira ou segunda votações, a maioria dos candidatos desiste.

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Com freqüência, acreditei que o impasse Blair versus Brown dos últimos 10 anos teria sido evitado se Brown, assim como John Prescott e Margaret Beckett, tivessem disputado com Blair a liderança em 1994. Mas isso não é tão simples quanto parece. Ao apoiar Brown, um eleitor incorreria no risco de cindir a votação no Novo Trabalhismo e permitir, por incrível que hoje possa parecer, que Prescott liderasse o primeiro turno, e então adquirisse um ímpeto difícil de conter. A maioria dos complicados sistemas de representação proporcional, assim como o voto transferível único usado na Irlanda, é muito melhor do que a regra "ganha o primeiro a cruzar a linha de chegada" para brecar um candidato temido do que para favorecer um nome desejado.

Esses paradoxos eleitorais não são, porém, o cerne da questão. Mesmo se não existissem, o fato de 51% imporem sua vontade a 49% é apenas marginalmente melhor do que 49% imporem sua vontade a 51%. Liberais defensores do mercado freqüentemente destacam que um supermercado funciona como um referendo contínuo em que cada votante pode expressar sua preferência e registrar sua intensidade. Existem, porém, bens coletivos, como a Defesa, onde decisões políticas são inevitáveis.

Ainda mais importante, é preciso notar que democracia não é, em si mesma, suficiente proteção para a liberdade humana. Uma maioria intolerante pode tornar a vida um inferno para outros cidadãos. Por essa razão, cláusulas pétreas são freqüentemente inseridas em constituições, como na Irlanda do Norte, onde um grupo religioso está em permanente minoria.

Platão argumentou que dar a cada cidadão o mesmo poder de voto não é mais racional do que pôr um marinheiro recém-recrutado no mesmo plano que um marinheiro experimentado. O problema nessa analogia é que não existe competência indiscutível na condução de um país, e que o cidadão comum tem uma idéia tão boa sobre onde o sapato aperta quanto um alto funcionário governamental. A melhor maneira de ver a democracia é como sendo uma regra decisória para trocar governos sem uso de força. No mínimo, porém, nunca deveríamos elogiar a democracia sem qualificá-la de democracia liberal.

Como diz Gordon Graham em seu livro escassamente discutido, The Case Against the Democratic State (Imprint Academic, 2002), liberalismo é um freio à democracia - e não um reforço. Seria possível que os eleitores americanos decidissem dar tanto a Ronald Reagan como a Bill Clinton um terceiro mandato, mas a Constituição atualmente proíbe essa hipótese, o que limita o acúmulo de poder pessoal. Aqueles que equivocadamente usam a democracia como se fosse o supra-sumo da sabedoria são os neo-conservadores partidários de George W. Bush, cuja atuação se traduz em "combatê-los, derrotá-los e torná-los democráticos". Vejam aonde isso nos levou.