Título: Romper as cercas
Autor: Russo, Osvaldo
Fonte: Valor Econômico, 09/03/2007, Opinião, p. A16

Em recente entrevista, o dirigente nacional do MST, João Pedro Stédile, provoca o debate agrário defendendo, entre outras propostas, a desvinculação do Incra do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e sua vinculação direta, com nova estrutura e atribuições, à Presidência da República, como forma de agilizar e qualificar a reforma agrária. Mas de que reforma agrária falamos? Qual o seu marco político e jurídico e quais os seus objetivos? No Brasil que se quer desenvolvido, há consensos: precisamos gerar empregos, abolir a pobreza, distribuir renda, reduzir as desigualdades, respeitar o meio ambiente e garantir os direitos de cidadania.

A mídia, freqüentemente, associa reforma agrária a conflitos no campo. Massacres de trabalhadores rurais, como os de Corumbiara, em Rondônia, e de Eldorado dos Carajás, no Pará, ocorridos em 1995 e 1996, continuam na lembrança de todos nós. Logo após o massacre de Corumbiara, em audiência com o presidente da República, foi sugerido por mim e pelo então presidente da Contag, além de rigor na apuração e punição dos culpados, demitir o fazendeiro que presidia o Incra e vincular o órgão diretamente à Presidência. Em vez disso, o presidente preferiu nomear para o instituto o seu então secretário particular. Após o massacre de Eldorado dos Carajás, o governo criou o cargo de ministro extraordinário de Política Fundiária, que, na prática, acumulou a presidência do Incra.

Iniciado o segundo mandato do presidente Lula, sem prejuízo do debate, de todo oportuno, não vejo hoje como indispensável a vinculação do órgão executor da reforma agrária à Presidência da República. Na época não existia o MDA, o Incra era vinculado ao Ministério da Agricultura, dominado pelos "de cima" - os grandes fazendeiros - e por políticas de apoio ao agronegócio, o que não é o caso do MDA que, no atual governo, com diálogo e sem criminalizações, vem articulando políticas de apoio aos "de baixo" - sem-terra, assentados e agricultores familiares, cuja aliança político-programática não se deve dispensar. Obstáculos político-legais, índices de produtividade desatualizados e outros entraves, como recursos humanos, reconhecidos pelo ministro da área, são mais impeditivos para a efetivação de uma reforma mais ampla do que a apontada vinculação ao MDA.

O mais importante, a meu ver, é dotar o Incra dos instrumentos e recursos necessários para cumprir o seu principal papel: gerenciar os recursos fundiários do país, impedindo a sua grilagem e o desvio de finalidade de sua ocupação e uso, e garantir aos trabalhadores rurais o acesso à terra mediante, prioritariamente, a aplicação do dispositivo constitucional da desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária, do latifúndio improdutivo. A compra de terra e o crédito fundiário deverão ser utilizados de forma seletiva, complementar e não competitiva com o instrumento principal - a desapropriação por interesse social. As terras públicas rurais, desde que aptas economicamente e protegido o meio ambiente, devem ser destinadas ao assentamento de famílias de trabalhadores rurais.

-------------------------------------------------------------------------------- É preciso dotar o Incra dos instrumentos e recursos necessários para cumprir o seu papel de gerenciar os recursos fundiários --------------------------------------------------------------------------------

Sem deixar de cumprir metas - apesar de questionadas pelos movimentos sociais, o governo anunciou que cumpriu 95% delas -, o poder público deveria garantir infra-estrutura e condições adequadas de produção e comercialização, qualificando o processo de reforma agrária, conforme diretriz do presidente da República. É preciso recuperar assentamentos abandonados e implantar projetos que se tornem produtivos, inclusive com agregação de renda a partir da criação de agroindústrias familiares associativas em maior escala. Para isso, é necessário garantir o apoio financeiro aos assentados através de novo sistema de crédito rural, além de políticas públicas orientadas para o desenvolvimento rural sustentável.

Tem razão o dirigente do MST: uma forma de dar maior eficácia na utilização dos recursos públicos é alocá-los prioritariamente em áreas geográficas reformadas ou selecionadas, a serem fixadas pelo Plano Nacional de Reforma Agrária, que deve ser executado com a mais ampla participação dos trabalhadores rurais e suas organizações. Será indispensável também a sua articulação com as demais políticas públicas, especialmente educação, saúde, segurança alimentar e política agrícola.

Ao lado disso, é necessário recuperar a função cadastral do Incra, hoje com maiores recursos tecnológicos que disponibilizam modernos sistemas de georeferenciamento. É preciso não perder mais tempo e promover o recadastramento geral de imóveis rurais e dos detentores de sua propriedade, posse e uso. As estatísticas cadastrais do Incra, mesmo com as limitações declaratórias do passado, já se constituíram, juntamente com as estatísticas censitárias do IBGE, em referência para estudos e pesquisas sobre a estrutura agrária brasileira.

A mudança organizativa não deve ser só no Incra, mas também no MDA. As atribuições do órgão que cuida do crédito fundiário devem ser transferidas para o Incra, já que é uma forma de obtenção de terra - atribuição precípua do Incra. O MDA poderia cumprir papel não só de apoio à agricultura familiar, mas também de apoio aos assentamentos, aproveitando a estrutura regional de suas delegacias e recuperando em parte a concepção originária do Estatuto da Terra, que separava órgão executor da reforma agrária - leia-se obtenção, distribuição e redistribuição de terra - de órgão promotor do desenvolvimento dos projetos de assentamentos de reforma agrária ou de ocupação de terras públicas.

Nesse sentido, para cumprir essas tarefas, é necessário recuperar o papel do Estado, incluindo, ao lado do fortalecimento do órgão executor da reforma agrária, a estruturação de um sistema e de um centro de estudos, pesquisas, formação, capacitação e assistência técnica para atender aos assentados, agricultores familiares e os próprios agentes públicos da reforma agrária. É possível avançar dentro de uma concepção mais abrangente de reforma, no sentido de também romper a cerca do conhecimento que exclui historicamente os camponeses.

Osvaldo Russo foi presidente do Incra (1993/94), é estatístico e vice-presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra).