Título: Sakineh segue presa
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 11/12/2010, Mundo, p. 32

Emissora de TV estatal de Teerã e promotor da cidade de Tabriz desmentem a libertação de "viúva adúltera", retirada do cárcere apenas para reconstituir o assassinato do marido em seu próprio lar. Ativistas exibem indignação

Uma imagem vale por mil palavras. O ditado se encaixa bem no caso da viúva iraniana de 43 anos condenada à morte. Nas fotografias divulgadas anteontem pelas agências Reuters e France Presse, Sakineh Mohammadi Ashtiani aparece em sua casa, na cidade de Oskou, 570km a noroeste de Teerã. Acompanhada do filho

Sajjad Ghaderzadeh, ela preserva um olhar triste e melancólico. Traz nas mãos um lenço que, em uma das cenas, leva ao rosto para enxugar as lágrimas. Os retratos circularam pela internet e chegaram às mãos da ativista Mina Ahadi, que se exilou em Berlim e fundou o Comitê Internacional contra o Apedrejamento (leia a entrevista nesta página). Na última quinta-feira, essa organização não governamental anunciou ter recebido a notícia extraoficial sobre a libertação de Sakineh. A alegria e a surpresa deram lugar à decepção e à incredulidade.

A emissora estatal iraniana Press TV esclareceu que obteve permissão judicial para retirar a viúva da prisão, em Tabriz, e viajar com ela por 25km até seu lar. Tudo para gravar uma edição especial do programa Iran Today, no qual Sakineh ¿confessa¿ o suposto assassinato do marido e participa da reconstituição do crime. ¿Ao contrário da vasta campanha publicitária da mídia ocidental de que a assassina confessa Sakineh Mohammadi Ashtiani foi libertada, uma equipe de produtores e de funcionários da Press TV organizou com as autoridades judiciais para seguir Ashtiani até sua casa, para recontar detalhes do assassinato de seu marido na cena do crime¿, afirmou um comunicado divulgado pela rede de tevê.

Por sua vez, a agência de notícias oficial Irna divulgou ontem uma entrevista com Moussa Khalilolahi, promotor de Tabliz. Ele assegurou que ¿Sakineh Mohammadi Ashtiani está em detenção¿ e reiterou que qualquer notícia baseada em sua libertação ¿é pura mentira¿. ¿Nenhuma mudança foi feita sobre sua condição legal. O caso está seguindo todos os procedimentos normais e legais¿, garantiu.

Uma resposta inaceitável para ativistas que travam uma verdadeira batalha para ver Sakineh livre. ¿Esse comportamento do regime iraniano é, definitivamente, um tapa na cara da comunidade internacional e apenas mostra a extensão de sua crueldade e de sua brutalidade¿, afirma ao Correio a escritora Marina Nemat, que em 1982 esteve prestes a ser fuzilada por protestar contra a Revolução Islâmica. ¿Não nos esqueçamos de que, nas últimas três décadas, o governo tem detido, torturado e assassinado iranianos, com base em acusações falsas. Eu mesma fui espancada e estuprada, durante os dois anos que passei na Prisão Evin¿, relata. Marina lembra que a Press TV é totalmente controlada por Teerã. ¿O que a emissora não revela é que as confissões de Sakineh foram o resultado de extrema intimidação e, muito provavelmente, de tortura¿, acrescenta.

Novo caso A Anistia Internacional, entidade sem fins lucrativos de defesa dos direitos humanos no mundo, demonstrou indignação ante a falsa libertação. ¿Se as autoridades (iranianas) estão buscando usar essa `confissão¿ para tentar construir um novo caso contra Sakineh, por um crime que ela já está sendo julgada e sentenciada, nós condenamos isso nos mais fortes termos¿, declarou Philip Luther, vice-diretor do Programa da Anistia Internacional para o Oriente Médio e o Norte da África. Segundo ele, há indícios de que Teerã usa a mídia oficial para retratar a prisioneira como uma criminosa perigosa, que merece ser executada. ¿Se Sakineh segue presa apenas por ter mantido relações sexuais consensuais, então ela deveria ser libertada¿, pediu Luther.

O mesmo raciocínio tem o ativista e neurocientista norueguês-iraniano Mahmood Amiry-Moghaddan, porta-voz da ONG Iran Human Rights. ¿O objetivo do documentário Iran Today foi o de construir o caso contra Sakineh. As autoridades já haviam usado a rede nacional de TV para exibir várias `confissões¿ dela. Mas, agora, graças à ampla atenção internacional, tentam mostrar essas `confissões¿ para a comunidade internacional, por meio de um canal de idioma inglês¿, explica. Ele acredita que a intenção de Teerã é reduzir a solidariedade internacional para com a viúva, ao mostrá-la como uma assassina. ¿Ao contrário do que o Irã imaginava, as notícias incorretas sobre a libertação dela atraíram os olhos do mundo e chatearam as autoridades locais¿, conclui.

EU ACHO...

¿Não existe Estado de direito no Irã. O país assinou as convenções sobre os direitos humanos da ONU, mas ainda tortura e apedreja pessoas. Transmitir as chamadas `confissões¿ de prisioneiros não é nenhuma novidade no Irã. Eles (os governantes do país) têm feito isso nos últimos 30 anos, porque estão dispostos a qualquer coisa para provar que prisioneiros inocentes são culpados e merecem uma punição.¿ Marina Nemat, escritora iraniana sentenciada à morte no início da década de 1980

¿Sakineh está viva graças à atenção internacional criada pelos ativistas, a mídia, a sociedade civil e por todos que lhe expressaram apoio. Ela precisa de nosso apoio mais do que nunca. Uma vez que o nível de atenção seja reduzido, a iraniana estará em perigo real. Estou especialmente preocupado com a proximidade do Natal e do Ano-Novo. Será a melhor época para que o regime iraniano leve a cabo seus planos.¿ Mahmood Amiry-Moghaddam, porta-voz da ONG Iran Human Rights

ANÁLISE DA NOTÍCIA Destino traçado

Querem matar a iraniana Sakineh Mohammadi Ashtiani. Antes, o desejo do regime de Teerã é expor a viúva de 43 anos como se fosse um troféu e uma prova cabal de soberania incontestável da Justiça islâmica. Sakineh já recebeu 198 chibatadas, amargou seis anos de prisão, enfrentou um julgamento sumário e com poucas chances de defesa. Foi amordaçada, obrigada a conceder entrevistas nas quais confessava publicamente um crime que não se sabe se ela realmente cometeu. Ativistas garantem que as acusações contra Sakineh foram forjadas.

Em nome de uma lei tolhida pela religião, os juízes do Irã encontram pretextos para a execução da mulher, mesmo ante o clamor da opinião pública mundial. Querem executá-la e desafiar o Ocidente. Estendem sua agonia em uma espécie de clamor sádico por punição. Nem mesmo a amizade do colega Luiz Inácio Lula da Silva comoveu o presidente iraniano, Mahmud Ahmadinejad, que recusou a oferta de asilo. O destino de Sakineh parece tragicamente traçado. (RC)

ENTREVISTA MINA AHADI ¿A decisão foi política¿

Na quinta-feira, a iraniana Mina Ahadi, fundadora e presidente do Comitê Internacional contra o Apedrejamento, surpreendeu o mundo ao anunciar a libertação de Sakineh Mohammadi Ashtiani. Uma dia depois, em entrevista exclusiva por e-mail ao Correio, a ativista exilada em Berlim trocou a satisfação pela indignação. Segundo ela, a informação sobre a soltura de Sakineh se baseou em relatos de fontes no Irã, em fotografias e em notícias divulgadas pelos jornais do regime islâmico. ¿O Irã não sabe o que fazer com Sakineh¿, desabafou Ahadi. Ela acusa o Irã de usar a TV estatal para proclamá-la assassina do próprio marido.

Por que a senhora anunciou a libertação de Sakineh na quinta-feira? Nós tínhamos relatos, a partir do Irã, de que o regime prometeu libertá-la, caso ela concedesse uma entrevista. Temos informações por escrito sobre isso e vimos fotos de Sakineh. Alguns jornais do regime islâmico também haviam anunciado que ela estava livre.

Como a senhora analisa a decisão do Judiciário iraniano de autorizar que Sakineh participasse da reconstituição do crime em sua própria casa? Isso é uma ação contrária à comunidade internacional. No Irã, todas as decisões são políticas. Agora, a emissora iraniana Press TV produziu um filme sobre Sakineh e a proclamou assassina. É um escândalo o fato de um jornal ou uma TV se prestarem a esse papel.

Em sua opinião, o que teria motivado a Press TV a filmar essa reconstituição? O regime islâmico está sob pressão. O mundo está se levantando contra o apedrejamento, e esse regime bárbaro trata de se defender. Eu acredito que é ridículo e insolente quando um governo, por meio de um programa de TV, queira apresentar a senhora Ashtiani como uma assassina e matá-la.

O que é possível fazer para salvá-la? No último dia 8, fiz um pronunciamento no Parlamento Europeu. Também designamos uma delegação independente para se dirigir até o Irã. O italiano Borono Malatia, o novo advogado de Sakineh, tem falado por ela e também viajará a Teerã.

O Irã estaria agora mais determinado a matar Sakineh? O Irã não sabe o que fazer com Sakineh. O regime está sob pressão e deve parar essa campanha contra ela. Se fizerem algo contra Sakineh, as coisas ficarão piores. Temos que seguir em frente e fazer o possível para salvá-la. (RC)