Título: Comissão investiga civis na tortura
Autor: Lima , Vandson
Fonte: Valor Econômico, 19/02/2013, Política, p. A6

A princípio meros registros burocráticos da entrada e saída de pessoas de um órgão público, os seis livros de presença do extinto Departamento de Ordem Política e Social (Dops) - um dos órgãos de repressão da ditadura militar - encontrados pela Comissão da Verdade de São Paulo junto ao Arquivo Público do Estado converteram-se em um primeiro passo fundamental para delinear a conivência - ou mesmo a participação - de empresas e representações estrangeiras em violações aos direitos humanos ocorridas no Brasil durante a ditadura militar.

E as investigações que virão devem tornar ainda mais claras quais eram essas conexões. Em audiência pública realizada ontem, o presidente da comissão, deputado estadual Adriano Diogo (PT), recebeu documentos que "comprovam a contribuição patronal, em diversos setores, ao golpe". São documentos da época obtidos por grupos sindicais que mostram como empresas, estatais e privadas, costumavam delatar ao Dops funcionários seus que possivelmente fossem ativistas políticos.

Os livros encontrados no Arquivo Público contêm diversos registros de entradas de Geraldo Resende de Matos, que se identificava como representante da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), e do cônsul dos Estados Unidos na época, Claris Rowney Halliwell. Outros representantes de empresas também aparecem nos livros, ainda que com menos frequência. A comissão vai pedir explicações à Fiesp e ao consulado sobre possíveis relações entre as duas instituições e os serviços de repressão na época da ditadura militar.

No caso do cônsul americano, uma de suas idas ao Dops, no dia 5 de abril de 1971, coincide com a data de captura de Devanir José de Carvalho, o comandante Henrique, integrante do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), que, levado para o Dops, foi torturado e morreu dois dias depois. O livro indica a entrada do cônsul, mas não a saída, o que faz supor que ele possa ter permanecido muito tempo no local. "O que esse cidadão diplomático fazia dentro do Dops, onde pessoas estavam sendo torturadas? É impossível que ele não tenha ouvido as torturas", questiona Ivan Seixas, membro da comissão e presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe).

"Foram três dias seguidos de tortura do Devanir José de Carvalho. Nesses três dias, todo mundo ouviu [os gritos], inclusive nas redondezas. E essa pessoa estava lá dentro, naquele momento, virando a noite, enquanto o torturado agonizava... no mínimo ele foi omisso. O governo americano deve uma satisfação", opina Seixas. "Esses documentos são apenas o começo. Eles têm muita informação, não é só a parte que foi exposta: ainda vão aparecer mais coisas. Estamos perguntando o que aconteceu, quem eram essas pessoas e o que faziam lá, mas já dá para concluir muitas coisas", completou.

No caso de Geraldo Resende de Matos, a comissão observou que ele esteve no local centenas de vezes. Só entre os anos de 1971 e 1974, de acordo com os livros do período que foram encontrados, Matos esteve no Dops 124 vezes. Todo o material que foi encontrado está em análise. A comissão admite a possibilidade de que surjam mais nomes de pessoas e de entidades ligadas aos órgãos de repressão.

Para o diretor do Departamento de Preservação e Acervo do Arquivo Público do Estado, Lauro Ávila Pereira, embora os livros de entrada e de saída do Dops pudessem ser considerados de pouca importância, por não serem relativos a presos políticos ou à repressão, eles constituem documentação que, se for bem trabalhada, poderá mostrar - e está demonstrando - o envolvimento de diversos segmentos da sociedade civil no processo repressivo. "É um material que ficou guardado, sem tratamento arquivístico, e agora foi digitalizado e está disponível na internet na página do Arquivo do Estado", disse Pereira.

No dia 1º de abril, o Arquivo Público vai lançar, na internet, a digitalização de mais de 850 mil documentos referentes à ditadura militar, parte de um acervo de aproximadamente 1,2 mil metros lineares relativos ao período. "Há uma diversidade grande de documentos, todos eles do Dops de São Paulo", informou o diretor do Arquivo Público.

A reportagem não conseguiu contatar o Consulado dos Estados Unidos em São Paulo. Procurada, a Fiesp respondeu, em nota, que o nome de Geraldo Resende de Matos não consta de seus registros como membro da diretoria ou funcionário da entidade. "É importante lembrar que a atuação da Fiesp tem se pautado pela defesa da democracia e do Estado de Direito e pelo desenvolvimento do Brasil. Eventos do passado que contrariem esses princípios podem e devem ser apurados", diz a nota. (Com agências noticiosas)