Título: As importações e o crescimento econômico
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 06/03/2007, Opinião, p. A22

Um dos maiores desafios enfrentados por um economista é perceber mudanças graduais que ocorrem no funcionamento de uma economia de mercado. Nestes momentos, em que aparecem novos problemas de gestão e estratégia de política econômica, o apego a visões moldadas na realidade anterior funciona como uma força que retarda seu entendimento. Keynes tem uma imagem que ilustra estas situações, pouco freqüentes, mas especiais. Dizia ele que muitos economistas se comportam como o comandante de um navio que, em meio a uma tempestade muito forte, com gente morrendo, simplesmente diz: "Quando a tempestade passar, tudo voltará ao normal".

Um exemplo deste choque entre analistas que não entendem as mudanças no metabolismo econômico e aqueles que as percebem ocorreu em 1939, na Inglaterra, quando do início da Segunda Grande Guerra. Os protagonistas maiores deste debate foram Keynes e funcionários do Ministério das Finanças do governo inglês. Keynes propunha uma série de medidas ousadas para enfrentar uma nova realidade que a guerra iria criar, principalmente no mercado de trabalho. Sua análise foi perfeita e as conseqüências do não enfrentamento do problema foram graves para a economia e a sociedade inglesa.

Outro exemplo ocorreu no Brasil, entre 1982 e 1994, com a questão da inflação. A indexação generalizada dos preços e contratos acabou por criar uma dinâmica da inflação diversa daquela relatada nos livros-texto. Depois de muitos fracassos da política tradicional - e de heterodoxias irresponsáveis -, somente chegamos à estabilização da moeda com o Plano Real, que diagnosticou e enfrentou corretamente o problema.

Vivemos hoje um destes períodos de mudanças na economia brasileira. Ele resulta de uma situação de solvência externa totalmente nova, derivada do aumento da demanda mundial pelas exportações brasileiras e de um choque favorável nos termos de troca. Os vultosos superávits comerciais - e mais recentemente o dinamismo do mercado de capitais - têm permitido um rápido processo de acumulação de reservas internacionais e redução da dívida externa. A apreciação da taxa de câmbio real é conseqüência deste fenômeno. O Brasil tem hoje uma economia aberta com uma sobra de dólares estrutural e com baixa volatilidade da taxa de câmbio. A previsibilidade de médio prazo aumentou e hoje o horizonte de planejamento dos agentes econômicos pode ser mais longo, inclusive permitindo-lhes contar com uma crescente participação das importações em sua matriz de produção e consumo.

Esta maior abertura da economia é muito positiva para a inflação, como ficou claro no ano passado com a rápida convergência do IPCA para nível inferior à meta do BC e a contínua deflação dos preços industriais ex-alimentos. O balanço de riscos para a inflação é hoje muito favorável. A prova disso é que o rápido crescimento do consumo de bens comercializáveis no ano passado, inclusive para investimento, não foi suficiente para causar pressões de preços. Mesmo a política fiscal expansionista do governo Lula parece ter limitado potencial inflacionário no momento, já que é um fator a mais operando no sentido de apreciar o câmbio real. A conseqüência natural do alargamento da fronteira de consumo permitido pelas importações é um amplo espaço para redução da taxa de juros real, de forma compatível com a meta de inflação, como já estamos vendo, ainda que lentamente.

Uma questão tem aparecido com freqüência na mídia especializada: o que este aumento expressivo de nossas importações representa para nossa economia no futuro, principalmente em relação ao nível de atividade. Como sempre acontece no Brasil, as posições evoluem rapidamente para uma clivagem do tipo 'bom' ou 'ruim'. Mas o grande desafio é primeiro entender a natureza do fenômeno que estamos vivendo e suas conseqüências de longo prazo para a economia, antes de qualquer juízo de valor.

-------------------------------------------------------------------------------- Vivemos um período de mudanças na economia brasileira, resultado de uma situação de solvência externa totalmente nova --------------------------------------------------------------------------------

Não há dúvida de que um grande benefício do aumento das exportações é permitir o crescimento das importações, de modo que o consumo e o investimento domésticos possam se expandir com menor pressão inflacionária e com efeitos positivos para a eficiência do aparelho produtivo. Não é mistério que a valorização do câmbio real tende a baratear o preço relativo dos bens de capital e incentivar o investimento, com efeitos positivos em termos de produtividade. Também não se pode questionar a contabilidade nacional, onde uma redução das exportações líquidas entre dois pontos de tempo por definição significa aumento da participação dos outros componentes no total da demanda agregada.

Mas a questão de fundo não é o tamanho atual de cada pedaço da pizza (os componentes da demanda agregada) e sim o tamanho da pizza inteira (o PIB), hoje, amanhã e depois de amanhã. Não é uma questão de estática e sim de dinâmica, ao longo de vários períodos. Um país em desenvolvimento cresce mais com contas correntes equilibradas (ou mesmo superavitárias) ou deficitárias? Cresce mais com aumento (ou mesmo neutralidade) das exportações líquidas ou com diminuição progressiva das exportações líquidas? Há evidências empíricas de que a primeira alternativa de ambas as perguntas tem mais chances de ser verdadeira.

Em outras palavras, as questões que realmente importam demandam um exercício intelectual mais amplo: por que as exportações líquidas estão contribuindo negativamente? Por que o quantum exportado está crescendo abaixo de 5% ao ano mesmo com todo o boom da economia mundial? Por que o quantum de importações cresce acima de 20% ao ano em um ambiente de crescimento doméstico ainda insuficiente em relação ao que ocorre no resto do mundo? Por que a indústria de transformação brasileira cresceu apenas 1,9% em 2006? E, por fim, mas não menos importante, será que o papel crescente das importações para complementar a oferta doméstica e manter a inflação baixa não permite uma redução mais rápida do juro real?

Também é preciso levar em conta o choque negativo que um ambiente interno de negócios de péssima qualidade - que passa principalmente pela política fiscal - provoca quando uma economia se abre, de forma perene, em função de uma nova situação de sua solvência externa. Nesta situação nova, é preciso igualar as condições de competitividade sistêmica para que não se crie uma contração desnecessária, decorrente apenas da rigidez institucional.

E aqui novamente a grande semelhança entre a imagem de Keynes sobre o capitão do navio e a posição de muitos economistas. Com a restrição representada pelo ambiente de negócios sem ser atacada, setores importantes - e em outra realidade institucional, viáveis - de nossa indústria serão, durante a tempestade, exportados para outros países, com reflexos danosos sobre empregos e salários, que, no novo equilíbrio futuro, estarão perdidos para sempre.

O debate que importa é o de como aproveitar o excepcional momento da economia mundial para mudar o patamar de desenvolvimento do Brasil. E esta discussão, de natureza estratégica e não conjuntural, não está presente na medida necessária.

Luiz Carlos Mendonça de Barros é engenheiro, economista e sócio da Quest Investimentos

Paulo Pereira Miguel é economista e sócio da Quest Investimentos