Título: Murilo Portugal vê risco de estagnação com reservas em alta
Autor: Romero, Cristiano
Fonte: Valor Econômico, 06/03/2007, Finanças, p. C8

Além de custosa, a política de acumulação de reservas cambiais como mecanismo de prevenção de crises, adotada por países emergentes como o Brasil, poderá gerar deflação e estagnação na economia mundial. O alerta é do economista brasileiro Murilo Portugal, ex-secretário executivo do Ministério da Fazenda, hoje vice-diretor gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), em Washington.

"Se todos os países quiserem acumular ao mesmo tempo mais reservas, gerando superávits na conta corrente, isso poderá gerar uma tendência deflacionária, de estagnação no mundo", advertiu, em entrevista ao Valor. A acumulação de reservas em moedas fortes, explica Portugal, em geral é feita por países que, mesmo tendo adotado políticas "corretas", ainda possuem vulnerabilidades.

É o caso, por exemplo, do Brasil. O país já conseguiu resolver os problemas de fluxo que tinha tanto na área fiscal quanto externa, mas ainda persistem problemas de "estoque" no front fiscal. "A nossa dívida interna é muito alta em percentagem do PIB, uma grande parte ainda é de curto prazo e outra grande parte ainda é indexada à taxa de juros de curto prazo. Isso não vai se resolver de hoje para amanhã. Até resolver, a vulnerabilidade continuará", afirmou Portugal, que participou no fim de semana, no Rio, de seminário do G-20 sobre a reforma do FMI.

Responsável pelo acompanhamento de 70 países nos cinco continentes, Portugal ocupa hoje o cargo mais importante que um representante de um país em desenvolvimento pode ter na hierarquia do Fundo. Chegou lá por méritos, não por indicação do governo. É o primeiro brasileiro a ocupar a função. Nesta entrevista, ele fala sobre as mudanças em gestação no FMI.

Valor: Depois das crises asiática, russa e brasileira, os países emergentes, inclusive o Brasil, passaram a adotar estratégias de "self insurance" - acumulação de reservas para prevenir crises. O FMI perdeu importância como emprestador de última instância?

Murilo Portugal : Acho que não. Acumular reservas é uma política custosa. E não é uma solução geral. Se todos os países quiserem acumular ao mesmo tempo mais reservas, gerando superávits na conta corrente, isso não será possível. Poderá gerar uma tendência deflacionária, de estagnação no mundo.

Valor: Qual seria a alternativa?

Portugal : Fazer um "pool" de reservas, e o FMI nada mais é do que um "pool" de reservas internacionais. Estamos discutindo a criação de um novo instrumento - a "Reserve Augmentation Line" (RAL, linha de aumento das reservas). Ela seria a substituta da CCL (sigla em inglês de Linha de Crédito Contingente), que não funcionou.

Valor: Como funcionaria a RAL?

Portugal : A idéia é fortalecer os mecanismos de prevenção de crises que o Fundo tem. O principal para prevenir crises é que o país adote políticas macroeconômicas sólidas e realize reformas estruturais para reduzir vulnerabilidades e aumentar a taxa de crescimento potencial. Muitos países já fizeram isso e melhoraram seus fluxos, seja o fiscal, seja o externo. Mas, em razão da herança de políticas passadas, podem ainda ter vulnerabilidades como um estoque de dívida elevado, que é o acúmulo de déficits passados. É preciso tempo para que os fluxos ajustados corrijam os problemas de estoque. Nesse período de transição, o FMI colocaria à disposição dos países que estão nessas circunstâncias uma linha de crédito que pudesse ser sacada mais rapidamente em caso de crise. A idéia é que isso, junto com as políticas corretas, reduziria a probabilidade de essas crises acontecerem.

Valor: Já há consenso no FMI sobre a criação da RAL?

Portugal : O tema ainda está em estágio inicial de discussão e há opiniões diferentes entre os diversos países-membros. Alguns acham que isso não é necessário e que, quando um país tem problemas, o Fundo pode responder rapidamente. Esses países temem que uma linha de crédito automática aumente os riscos para os recursos do FMI e crie um problema de risco moral ("moral hazard").

Valor: Em que medida?

Portugal : Os países, por saberem que existe esse financiamento, relaxariam na implementação das políticas corretas. Os investidores internacionais, por sua vez, sabendo que haveria ajuda do FMI, tomariam riscos maiores financiando esses países. Outros países argumentam que os custos de uma crise são tão grandes que nenhum país se arriscaria a relaxar as políticas e enfrentar uma crise custosa. Argumentam que a existência desse tipo de linha poderia ajudar a reduzir o efeito manada dos investidores em períodos de grande incerteza. É um assunto complexo que teremos que discutir cuidadosamente, procurando responder às preocupações legítimas dos nossos países-membros.

Valor: O Brasil ainda é um país vulnerável a crises?

Portugal : No Brasil, o fluxo fiscal já foi corrigido e o externo, também. Mas, o país ainda tem uma vulnerabilidade em razão dos estoques, e o estoque é um reflexo de políticas passadas. Alguns países têm estoque de dívida muito alto, como é o caso do Brasil, ou têm estoque de dívida a muito curto prazo, que é um resultado da inflação, ou têm estoque de dívida muito vulnerável, que é o caso de muita vinculação à taxa de câmbio, problema que o Brasil já resolveu, ou muita vinculação à taxa de juros de curto prazo, que a gente ainda não resolveu. Então, quando o país tem boas políticas que já corrigiram os fluxos, tanto o fiscal quanto o externo, demora um tempo até que os fluxos corrijam os problemas de estoque. No caso do Brasil, os fluxos já começaram a corrigir.

Valor: Em que sentido?

Portugal : A dívida externa líquida praticamente acabou. A dívida interna indexada ao câmbio também foi eliminada, mas ainda temos outro problema.

Valor: Qual?

Portugal : A dívida interna é muito alta em percentagem do PIB, uma grande parte ainda é de curto prazo e outra grande parte ainda é indexada à taxa de juros de curto prazo. Isso não vai se resolver de hoje para amanhã. Até resolver, a vulnerabilidade continuará.

Valor: A importância de países emergentes como a China na economia mundial mudou, desde a crise asiática. Não deveria mudar também a forma de atuação do FMI?

Portugal : Isso já está acontecendo. Com a globalização crescente dos fluxos de comércio e de capital, aumentou a interdependência dos países. Com isso, o que um país faz em matéria de política econômica gera externalidades positivas ou negativas para os outros países. Esses países têm o direito de conhecer e discutir a situação, inclusive, fazendo sugestões de mudança. O Fundo funciona como um fórum de diplomacia econômica onde os países discutem entre si regularmente essas questões.

Valor: Mas, efetivamente, o que está sendo feito para lidar com os desequilíbrios globais?

Portugal : Consultas multilaterais. Trata-se de uma inovação. O Fundo está fazendo reuniões com representantes de EUA, China, Europa, Japão e Arábia Saudita para discutir o que eles acham que podem fazer em relação aos impactos de suas políticas sobre o balanço de pagamentos de outros países. Não é um problema que possa ser resolvido isoladamente. O Fundo vem recomendando que a maneira de resolver esses desequilíbrios é fazer um rebalanceamento do crescimento mundial.

Valor: Quais as recomendações?

Portugal : Para que os EUA aumentem sua poupança interna, com mais consolidação fiscal. No caso da China, a recomendação é que, em vez de crescer mais aumentando os investimentos, como eles vêm fazendo, cresçam aumentando o consumo. Os países exportadores de petróleo reciclariam mais, através de investimentos e consumo, os superávits enormes que têm na balança comercial. A Europa e o Japão fariam reformas estruturais para que pudessem crescer mais rápido. Se um desses países seguir a recomendação do FMI e os outros não seguirem, não se resolve o problema. Só resolve se todos agirem juntos. Daí, a idéia da consulta multilateral.

Valor: O que isso muda na forma de agir do FMI?

Portugal : O que muda é que, em vez de discutir com 185 países, você está discutindo com um grupo de países mais relevantes. O Fundo tem três funções básicas. Uma é a de emprestador, que agora diminuiu; a outra é "surveillance" (monitoramento das economias), que ele faz tanto bilateral quanto multilateralmente; e a terceira é a de ser o principal foro internacional de cooperação econômica e financeira entre os países. Em relação a essa terceira função, nunca foi dada uma concretude maior de como fazer. Não há um instrumento, uma ferramenta para fazer isso. A idéia de fazer a consulta multilateral é nesse sentido. O Fundo já tem a tradição, de mais de 60 anos, de fazer aconselhamento de políticas econômicas de países específicos, de realizar o "follow-up" (a revisão) da implementação das políticas e de ter uma visão equilibrada sobre esses temas todos. Os países podem usar as consultas multilaterais como instrumento para eles mesmos tentarem um acordo.

Valor: Os países ricos nunca seguiram os conselhos do FMI. Vão seguir agora?

Portugal : Existe um problema de ação coletiva. Primeiro, porque o Fundo só pode recomendar coisas que são do próprio interesse dos países. Todas as coisas que o FMI recomenda a um país têm que ser boas para aquele país. Às vezes, uma coisa que é boa para um país é difícil fazer. Tem custos para ser feita. Se um país decidir incorrer nos custos, o resultado positivo daquilo que ele está fazendo não é assegurado se os outros países também não tomarem determinadas ações. Então, isso cria um problema de ação coletiva. A idéia das consultas multilaterais é esta: "vamos aqui concordar num conjunto de coisas que precisam ser feitas e vamos todos fazer mais ou menos ao mesmo tempo". E o Fundo vai acompanhando e monitorando para saber se estão fazendo ou não.

Valor: O que o faz acreditar que, agora, há interesse não só dos países em desenvolvimento, mas também dos ricos, em reformar a arquitetura financeira internacional?

Portugal : Como eu disse, com a globalização crescente dos fluxos de comércio e financeiros, os problemas estão cada vez mais sendo transnacionais. Antes, a maioria dos problemas podia ser resolvida pelo G-7 (grupo dos sete mais ricos). Agora, se você quiser resolver os problemas dos desequilíbrios globais no G-7, não conseguirá porque algumas peças-chave importantíssimas para resolver isso, como a China, a Arábia Saudita, os exportadores de petróleo, não são do G-7. Isso cria oportunidades para aumentar o diálogo e a cooperação.

Valor: O que mais pode mudar nos critérios de suveillance do FMI?

Portugal : Estamos discutindo a atualização do Artigo IV do estatuto do Fundo. Ele estabelece o compromisso de todos os países membros, mesmo os que não têm empréstimos com o Fundo, de uma vez por ano realizar consultas com a instituição e receber uma missão para discutir seu desempenho e políticas econômicas. Isso é feito com todos os países membros, dos maiores e mais desenvolvidos aos menores. A missão vem, discute a situação com as autoridades do país e depois faz um relatório que é discutido no Conselho de Administração do Fundo.

Valor: Quais são os objetivos dessa consulta com base no Artigo IV?

Portugal : O objetivo é duplo. Por um lado, o FMI procura ajudar o país a melhorar suas políticas econômicas com o objetivo de alcançar crescimento maior sem aumento da inflação e sem gerar desequilíbrios externos. Faz isso discutindo as políticas que o país vem implementando, sugerindo mudanças e apresentando exemplos de outros países. Por outro, é informar aos demais países-membros sobre as políticas que estão sendo implementadas no país visitado, sobre vulnerabilidades e riscos que essas políticas e a situação econômica do país podem representar para seus vizinhos e para a economia internacional. O Fundo está discutindo como atualizar a decisão que disciplina as consultas do Artigo IV, que foi adotada em 1977, portanto, há cerca de 30 anos e que nunca mudou. Desde então, a forma pela qual o Fundo realiza as consultas mudou e o tipo de crise e de problemas gerados pelas políticas cambiais também mudou. Por isso, é importante adotar uma nova decisão sobre o tema.

Valor: O Brasil ficou de fora do último aumento de quotas promovido pelo FMI. Mesmo sendo uma das dez maiores economias do mundo, o país tem um poder de voto na instituição inferior ao de muitas economias menores. Na nova revisão, o país ganhará peso?

Portugal : O objetivo da revisão é ter uma fórmula para cálculo das quotas que melhor reflita a posição relativa dos diversos países-membros na economia internacional. Atualmente, existem cinco fórmulas diferentes, que são complexas e não muito transparentes e que dão um peso muito elevado à abertura comercial dos países, medida pela participação das exportações no PIB. Pelas cinco fórmulas atuais, o total das quotas dos países desenvolvidos deveria ser de 67% do total. A dos países em desenvolvimento é 28% do total e a dos países em transição (os países que formavam parte do antigo bloco soviético na Europa), 5%. A quota do Brasil, segundo essas fórmulas, deveria ser de apenas 1% (menor que a efetiva, que é 1,39%). As cinco fórmulas nunca foram aplicadas integralmente. Por isso, na verdade, as quotas atuais desses grupos de países são de 60,5% para os países desenvolvidos, 32% para os países em desenvolvimento e 7,5% para os países em transição.

Valor: Como ficará a nova fórmula?

Portugal : A idéia é ter uma fórmula mais simples e transparente e que dê um peso significativamente maior do que o atual para o PIB. A expectativa é que a nova fórmula possa levar a um aumento das quotas dos países em desenvolvimento que apresentam crescimento mais rápido e que tem um peso maior na economia mundial. A primeira etapa de aumentos "ad hoc", realizada em Cingapura, beneficiou quatro países emergentes - China, Coréia, México e Turquia, com um aumento conjunto de 1,75 ponto percentual. Ainda é cedo para dizer se o Brasil vai ser incluído ou não num novo aumento.

Valor: Por quê?

Portugal : Depende de como o PIB em reais será convertido em dólares, se pela taxa de câmbio de mercado ou por uma taxa de câmbio baseada na paridade do poder de compra (PPP, na sigla em inglês), conceito que beneficiaria mais o Brasil. Esses são temas complexos e difíceis que vão exigir tempo para serem discutidos e para criar um consenso entre os países membros, pois os aumentos de quota requerem o apoio de países que representem pelo menos 85% do poder de voto total. O prazo para completar esse trabalho é outubro de 2008, mas queremos avançar antes disso.