Título: O trabalho de autor e a função da indústria
Autor: Lucki, Jorge
Fonte: Valor Econômico, 06/03/2007, EU & Investimentos, p. D8

Jean-Michel Gerin faz parte de uma elite de vinicultores que, a despeito da crise que se percebe hoje no mercado mundial devido à superprodução de vinhos, não tem nenhum problema em vender o que produz, calcada em apenas duas AOCs, as disputadas Condrieu, onde tem 2 hectares, e Côte Rotie, em que é dono de 8 hectares. Ao contrário, Gerin pode se dar ao luxo de escolher a quem vender e sua clientela não se compõe daqueles que se dispõem a pagar mais. Ele se importa mais em saber quem consome seus vinhos, quem dá valor por eles.

É a razão por ele preferir se concentrar mais no mercado francês, em particular estar na carta da maioria dos restaurantes estrelados da França, algo como 60% do volume produzido. É fiel à noção da importância de ser reconhecido em seu país e a partir daí levar boa reputação para fora - nos guias e críticos internacionais especializados, é um dos produtores mais cotados e elogiados da região. É também o que explica ele ter destinado uma parcela de seu estoque para o mercado brasileiro (importado pela Zahil / Wine House), e ter vindo aqui na semana passada para conhecer quem são os interessados por seus vinhos.

Jean-Michel Gerin é simpático, aberto e muito consciente de suas convicções. Aos 45 anos, com dois filhos - um deles desde pequeno demonstrou vocação e muita vontade de seguir os passos do pai - ele se questiona de uma forma positiva, e busca sempre novos estímulos. É o que o levou, junto com dois velhos amigos, também produtores, a encarar uma estrada e o desafio de produzir vinho no Priorato, na Catalunha, distante mais de seis horas de sua casa. O guia espanhol El Mundo elegeu seu vinho o melhor de 2006. Aqui, uma primeira parte da entrevista exclusiva que ele concedeu para o Valor.

Valor: Como começou seu Domaine?

Jean Michel Gerin: Eu sou a quinta geração de vitivinicultores. Meu pai teve grande importância na recuperação do vinhedo de Côte Rotie. Além da força de vontade dele e de alguns produtores, como prefeito de Ampuis (cidade defronte à área e centro nervoso da AOC) durante 36 anos ele conseguiu criar infra-estrutura e acessos para que se pudesse levar adiante o trabalho nas encostas, e facilitar o cultivo das vinhas. Quando comecei, no início da década de 80, recuperei velhas parcelas que eram de meu pai e de meu avô, e a partir de 83 comecei a comprar pequenas áreas - a primeira tinha apenas 2500 m2 -, algumas plantadas e outras em que precisei replantar por inteiro.

Valor: Há diferenças entre as parcelas?

Gerin: Todas estão situadas ao norte de Ampuis, a chamada Côte Brune, que dá vinhos mais estruturados do que na parte sul, a Côte Blonde, onde os vinhos são mais femininos. Os dois tops de linha, o Grandes Places, é um vinhedo com 1,3 hectares, inteiramente sobre xisto e não leva nada de Viognier. O mesmo acontece com o La Landonne, que tem apenas 0,5 hectares, mas são vinhos diferentes. O Champin le Seigneur é uma assemblage de várias parcelas, inclusive duas de Viognier, posicionadas em solo granítico, que representam 10% do volume, e é mais delicado, frutado e prazeroso no curto prazo.

Valor: A propósito, Côte Rotie é o paraíso da Syrah com vinhos tintos, e ao lado, encostado, há Condrieu, uma denominação só de brancos, produzidos exclusivamente com Viognier.

Gerin: A Viognier só dá bons resultados em solos graníticos, que, devido a uma falha geológica criou uma separação natural entre Condrieu e Côte Rotie. As duas regiões têm histórias parecidas. Condrieu também quase desapareceu. Há 25 anos só restaram 5 hectares. A partir de 1970 o vinhedo foi gradualmente aumentando e chega hoje a 120ha. De qualquer form,a a Viognier virou moda em outros países, mesmo sem as mesmas virtudes. A maior área plantada dela está hoje nos Estados Unidos

Valor: Fala-se que a uva Syrah começou no Rhône, ou mesmo em Côte Rotie, mas há controvérsias sobre sua origem.

Gerin: Há várias versões, desde que teria vindo da Pérsia, onde era a casta cultivada na região vinícola de Shiraz. Outros sustentam que seu nome e procedência vêm de Syracusa, trazidas com as legiões do Imperador Romano Probus, já no início da era cristã. Uma terceira dá conta de que era uma videira selvagem da região e foi domesticada se adaptando com mais facilidade ao local. Recentemente, com o auxílio de técnicas que chegam ao DNA da planta podemos ir mais longe e entender melhor a casta. Ao que parece ela é um cruzamento de uma variedade da Savoia, ainda lá existente, e de Ardèche, ali quase extinta. Não sabemos quando foi feito este cruzamento, mas estima-se que é bem antiga, talvez da época dos romanos, o que faz com ela exista há uns 2000 anos.

Valor: Como o sr. vê os vinhos elaborados com Syrah fora do Rhône Norte, onde ela domina? Inclusive no Rhône sul onde ela não é priorizada.

Gerin: No sul eles têm uma cultura tradicional e os compreendo bem. Falemos de Châteauneuf du Pape, por exemplo. A Grenache é extraordinária. Produz vinhos fabulosos; porque mudar? Podem dizer que sempre podemos progredir, mas chega um momento onde não podemos acrescentar grande coisa. Isso realmente é adaptação. A chance que temos em Côte Rotie é que possuímos velhas vinhas e com elas acabamos de organizar um conservatório. Com sua multiplicação podemos começar a plantar a partir de uma seleção bem antiga, que está perfeitamente adaptada ao nosso terroir. Não dá em nada selecionar Syrah em nosso terroir e planta-las em outro local.

Valor: E a Syrah de outros países?

Gerin: Creio que em cada vinhedo é preciso tentar ver quais cepas foram plantadas e que deram belas uvas com características bem definidas, que podem ser multiplicadas. É um trabalho enorme, trabalho de uma vida, que tem por objetivo as gerações que estão por vir. Faz-nos sentir bem e orgulhosos. Quando se fala de Syrah, sabemos que um trabalho de adaptação se faz há 250 anos na Califórnia, onde os espanhóis levaram essa cultura. Há vinhos notáveis lá, assim como existe na Austrália. É para mim, por exemplo, um momento de grande emoção provar os vinhos de Ron Laughton da vinícola Jasper Hill, em Victoria. É a Syrah em estado puro. Ele fez um estudo profundo. Isto quer dizer que em qualquer canto podemos encontrar boas adaptações casta/terroir. Podemos encontrar muitos Syrahs extraordinários, bastante distintos entre si, mas que podem nos levar a emoções diferentes. A uniformidade é entediante. Felizmente há produtores no mundo que elaboram vinhos a partir da mesma casta, que levam, porém, a vinhos completamente diferentes.

Valor: O sr. provou os Syrahs da Argentina e do Chile?

Gerin: A Syrah é uma variedade fácil de se adaptar, de se domesticar. Um produtor tem relativamente poucos contratempos com ela. É pouco sensível a doenças e assim tem condições bem favoráveis para produção em massa. A Syrah, mesmo dando um vinho mais frutado, não vai se adaptar a qualquer lugar. O perigo é estereotipar e penso que há um pouco disso nos chilenos e argentinos. Por outro lado, acho realmente bom que o fizeram. Depois é um problema deles. Voltamos sempre à questão da adaptação do terroir e da casta ao terroir.

Valor: Côte Rotie assim como outros grandes vinhos de pequena produção são exceção no mercado, que é dominado por vinhos mais comerciais. Como o sr. enxerga essa situação?

Gerin: Nós somos um pequeno número, nos conhecemos bem e tentamos, durante nossos encontros, refletir sobre o que é terroir, o que são nossos vinhos, o que fazer para que a viticultura persista. Pode-se sempre fazer oposição entre os vinhos industriais e os de autor que eu represento. No entanto, acredito seguramente que não se deve fazer oposição. É preciso ter vinhos industriais para conduzir novos consumidores ao vinho.

Valor: Seria a porta de entrada?

Gerin: Exatamente. Percebemos hoje que há um grande número de consumidores que não conhecem muita coisa de vinho, que pensam que pode ser interessante prová-lo, que isso pode lhes aportar prazer. Mas querem vinhos fáceis de identificar, por exemplo com menções tipo Cabernet, Merlot, Syrah, Riesling, etc. no rótulo. Alguns vão se aproximar e consumir um produto que existe desde os tempos imemoriais, o que me deixa muito contente. Uma parte desses novos consumidores, eventualmente uma pequena parte, dará um passo adiante indo em direção a vinhos melhores, um Côte Rotie talvez. Quanto isso representa em porcentagem? Possivelmente pouco, mas ao menos é um papel positivo que os vinhos industriais podem representar. Conduzir uma nova geração a consumir vinho é importante hoje.

Zahil/Wine House (11) 3071 2900