Título: O reinado soberano da Syrah
Autor: Lucki, Jorge
Fonte: Valor Econômico, 06/03/2007, EU & Investimentos, p. D8

Poucas regiões francesas podem se vangloriar de ter uma história vitivinícola tão rica e importante como o Vale do Rhône. Há indícios de que as primeiras vinhas foram plantadas em 600 a.C. após a fundação da cidade de Marselha pelos gregos, enquanto os romanos, hábeis na arte de lidar com elas, se incumbiram de propagá-las seguindo o curso do rio rumo ao norte até uma encosta ensolarada e escarpada diante da cidade de Vienne, cerca de 40 quilômetros ao sul de Lyon. Nascia ali, há 2400 anos, um dos vinhos mais prestigiados no país e no exterior, o Côte Rotie.

Como em toda a história, houve fases turbulentas, como a dificuldade em chegar a mercados fortes como Paris e Londres devido a bloqueios políticos internos, mas as virtudes dos vinhos ultrapassaram barreiras e na idade média estavam nas melhores mesas da Europa. Por volta do século XVIII os preços do Côte Rotie, assim como de outro nome de expressão da região, o Hermitage, se equiparavam, ou mesmo superavam, os dos célebres Premiers Grands Crus Classés de Bordeaux. Na época, inclusive, eles eram utilizados para melhorar esses grandes bordaleses, entre eles o Château Latour, prática utilizada até meados de 1850 e conhecida como " hermitager " .

Dali para a frente sucederam-se agruras. Começou com a filoxera, praga que dizimou as parreiras locais, assim como as do resto da Europa na segunda metade do século XIX. Nem bem o vinhedo começava a ser replantado veio a 1ª Grande Guerra e as vinhas foram abandonadas porque os homens foram convocados e não sobrou braços e pernas suficientemente fortes para encarar o trabalho insano de cuidar do parreiral numa área de encosta tão íngreme. Os números refletem a calamidade: em Côte Rotie, de 400 hectares de vinhas restaram 40 hectares.

Terminadas as guerras, com a situação beirando nível de miséria para a população, a primeira necessidade passou a ser comida, o que transformou o local, outrora fonte de grandes vinhos, em plantação de frutas e legumes. O quadro começou a ser recomposto nos anos 70, tomando impulso efetivo na década de 80 com as ações desenvolvidas por Marcel Guigal, em particular com seus três crus excepcionais o La Mouline, o La Landonne e o La Turque. O empurrãozinho que faltava para divulgar essas preciosidades veio a partir do providencial contato com o influente critico americano Robert Parker que caiu de amores por eles. Outros produtores se animaram a retomar seus vinhedos abandonados permitindo à Denominação Côte Rotie reviver seus dias de glória.

A pequena área - hoje cerca de 200ha - junto às dificuldades de cultivo nessas encostas que reduzem sobremaneira a produção, resulta em oferta baixa desses vinhos, fazendo com que seus preços, principalmente os crus mais conhecidos, atinjam valores muito elevados. Ali reina soberana a Syrah, que se beneficia de solos xistosos em sua grande parte e de um clima continental moderado, bem distinto do que acontece na parte baixa do Rhône, dominado climáticamente pelo Mediterrâneo e por terrenos de natureza variada, caso, entre outros do Châteauneuf du Pape, Nesses, aliás, a Syrah tem papel secundário, predominando em especial a Grenache.

A despeito de, mesmo numa área relativamente restrita, haver certa heterogeneidade entre os produtores - um bom guia e indicações honestas resolvem o problema - vale o esforço para prová-los, nem que seja juntando os amigos para compartilhar e dividir os custos de uma garrafa, ou bancá-la sozinho porque a ocasião merece. São tintos extremamente refinados, de cor intensa, aromas exuberantes de frutas vermelhas frescas, especiarias e, em geral, um toque floral que lembra violetas, concluindo com paladar sedutor, amplo, com taninos macios.

Contribui também para tanto, a possibilidade de mesclar à Syrah, variedade tinta, uma certa quantidade de Viognier - máximo 20%, mas que raramente chega a 10% -, uma casta aromática e bem estruturada responsável única pela A.O.C. vizinha, Condrieu, consagrada exclusivamente a (reputados) vinhos brancos. Na verdade, a Viognier não é trazida do vinhedo ao lado mas é plantada dentro da delimitação dos Côte Roties, aproveitando-se de falhas geológicas em que o solo é granítico ao invés de xistoso.

Algumas nuances distintas de clima, exposição e solo, além de não ter a participação da Condrieu, fazem toda a diferença quando se fala do outro grande vinho da Rhône Norte, o Hermitage. Apesar de utilizar a mesma Syrah, eles são mais austeros, e merecem no futuro um outro artigo.