Título: Prescrição retroativa: característica brasileira
Autor: Dino, Nicolao
Fonte: Valor Econômico, 06/03/2007, Legislação & Tributos, p. E2

Há duas coisas genuinamente brasileiras: bossa nova e prescrição retroativa. A primeira é motivo de orgulho, como forma de expressão de nossa cultura. É marca positiva de nossa diferença, atuando como locus de resistência num mundo globalizado que acelera a fusão de diversidades culturais, políticas e sociais e enfraquece o sentido de identidade. A segunda - prescrição retroativa - também nos caracteriza como um país diferente. Mas o traço é negativo, num país em que a violência e insegurança avançam em proporções asfixiantes, mas que ainda convive com causas absurdas de inefetividade e impunidade. Uma dessas causas é a prescrição retroativa.

O termo técnico pouco ajuda a compreensão do problema e talvez por isso o assunto passe despercebido nos debates públicos sobre os problemas do mau funcionamento das instituições. Mas, sem dúvida, seus efeitos são sentidos no cotidiano.

O Código Penal estabelece os prazos de prescrição para as penas, tomando por base o máximo da pena privativa de liberdade prevista para os crimes. Exemplificando, um crime de corrupção pode ser punido com uma pena mínima de um ano e no máximo oito anos de reclusão. Assim, pelo Código Penal, a pena prescreve, em termos abstratos, no prazo de doze anos. Isso significa que se a investigação não se iniciar nesse período ou se, após o início do processo, com o recebimento da denúncia, não houver o julgamento, incidirá a prescrição, extinguindo-se a punibilidade. É justo, pois não se pode pretender que alguém esteja submetido eternamente à (in)ação do Estado.

Mas no Brasil existe uma terceira forma de prescrição que é computada de frente para trás, com base na pena que o juiz aplica na sentença condenatória. É a chamada prescrição retroativa que, como dito, não existe em nenhum outro lugar do mundo.

No mesmo exemplo da corrupção, se o réu for primário e portador de bons antecedentes terá direito, em regra, a uma pena menor. Então, se ao final do processo, o réu for condenado a dois anos de reclusão, diz o Código Penal que a pena prescreverá em quatro anos. E agora o pior: esse novo prazo é medido em dois momentos passados - entre a data do cometimento do crime e o início do processo ou entre o início do processo (recebimento da denúncia pelo juiz) e o julgamento pelo juiz. Qual a conseqüência disso na prática? É simples: se a investigação durar mais que quatro anos ou o processo se estender por período superior a esse período, a pena de dois anos aplicada pelo juiz cairá no vazio; não será aplicada, porque prescrita. Um crime perfeito: apurado, provado e não punido. Isso vale para qualquer tipo de crime.

-------------------------------------------------------------------------------- Hoje, a lei mais eficaz para a defesa criminal bem-sucedida não é jurídica, mas sim uma lei da física; a Lei da Inércia --------------------------------------------------------------------------------

A prescrição retroativa toma, portanto, uma pena que é aplicada no futuro e a projeta para o passado. A pena concreta disciplina o instituto da prescrição e incide num período que já passou, quando ainda não se sabia, por evidente, qual a pena a ser aplicada na sentença. É algo parecido como marcar um compromisso em São Paulo para a tarde de sexta-feira, avisando, porém, a seus participantes que se houver atrasos de vôo em razão de "apagão aéreo" ou de chuva no aeroporto de Congonhas naquele horário, o compromisso será antecipado para a manhã do mesmo dia!

A prescrição retroativa é uma das maiores causas de impunidade, pois quanto mais complexo for o crime e mais envolvidos existirem, mais longa será a investigação e a instrução do processo. Somando-se a isso, um sistema processual que favorece inúmeras estratégias protelatórias de defesa e sucessivos recursos, tem-se o cenário perfeito da impunidade. Pode-se até afirmar que, no quadro atual, a lei mais eficaz para a defesa criminal bem-sucedida não é jurídica, mas sim uma lei da Física -- a lei da inércia - , pois se a pena for mínima e o processo for complexo e longo, a prescrição será inexorável.

O sentimento é de frustração coletiva: frustração de quem investiga, de quem promove a ação penal e de quem julga os processos e não vêem efetividade no trabalho desempenhado. Frustração, sobretudo, da sociedade que sofre cada vez mais com os males da impunidade.

Tramita na Câmara dos Deputados, desde 2003, um dos mais importantes projetos de lei de combate à impunidade. Trata-se do Projeto de Lei n° 1.383, de 2003, que extingue a prescrição penal retroativa, de autoria do então deputado Antônio Carlos Biscaia. É mais do que urgente a aprovação, sem alterações, desse projeto de lei que extingue essa curiosa forma de contagem de prescrição "à brasileira".

A Câmara dos Deputados, porém, está neste momento sofrendo pressões de setores interessados na manutenção do atual estado da coisa. Afirmam os adversários do projeto, entre outras pérolas, que ele trará mais poderes para o Ministério Público, o que poderia favorecer a ocorrência de abusos!? Ora, evidentemente não se trata disso! Pretende-se apenas que o resultado de um processo criminal iniciado e julgado seja útil e efetivo; que as penas possam ser, ao final, aplicadas e que, verdadeiramente, sejam reduzidos os focos de impunidade no país. É o mínimo que se pode querer num momento em que o medo e o desencanto parecem dominar o desejo coletivo de mudança.

Nicolao Dino é presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR)

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