Título: País precisa liderar "economia da floresta"
Autor: Chiaretti, Daniela
Fonte: Valor Econômico, 05/03/2007, Especial, p. A16

A pressão da população mundial quando os extremos climáticos começarem a ocorrer vai ser muito grande "

O pesquisador Carlos Nobre é um dos mais respeitados cientistas brasileiros, aqui e no exterior. O homem que ficou conhecido por divulgar os efeitos do El Niño, é um dos autores do segundo grupo de trabalho do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, o IPCC, que será divulgado em abril, em Bruxelas, e apontará os efeitos do aquecimento global e as pistas para se adaptar aos novos tempos. Ele avisa: "Ninguém deve ter a ilusão que se consegue reduzir emissões de gases a custo zero."

O que já se sabe, pela divulgação do primeiro relatório do IPCC, em fevereiro, é que a Terra aqueceu-se 0,7 °C em cem anos, metade da variação que o planeta registrou em 125 mil anos, e vai continuar esquentando. O nível do mar subiu 17 centímetros no século XX e subirá entre 30 cm e 40 cm neste século. As emissões atuais de gases do efeito-estufa crescem a taxas anuais de 3%, e se alguns desses vilões, como o metano, fica em média 11 anos na atmosfera, o dióxido de carbono, CO2, leva 140, sendo que uma parte vira um milênio antes de desaparecer. "É preciso eliminar a idéia errônea de que vai se descobrir uma cura, uma solução de engenharia que resolva o problema", diz este doutor em meteorologia, que estuda a Amazônia há 30 anos e é pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe, ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia.

O Brasil é o quarto emissor de gases do efeito-estufa do mundo, perdendo nesta corrida nada gloriosa para os EUA, campeão das emissões do planeta, Europa e China. Como a matriz energética brasileira é limpa, baseada em hidrelétricas, a emissão que se origina só da queima de combustíveis fósseis não é alta. O problema está no que o Brasil emite quando desmata. A emissão per capita do brasileiro atinge 0,5 tonelada de carbono por ano quando não se considera a emissão pelo uso das florestas. Se a conta somar derrubada de árvores, cada brasileiro emite, em média, 1,5 tonelada anual.

Nobre fala nas ações que devem ser tomadas já para brecar o que, gritam os cientistas, inevitavelmente virá. Passa pela esfera pública ("O Brasil precisa liderar a economia da floresta amazônica"), pelos empresários ("O aumento da eficiência energética é positivo tanto para o clima como para a economia") e pelos cidadãos ("Plantar árvores e neutralizar é um passo simbólico de uma postura mais filosófica. Será mais fácil implementar os próximos passos, que serão dolorosos"). A seguir, os principais trechos da entrevista, concedida em sua sala no Inpe, em São José dos Campos, diante de uma vista muito arborizada:

Valor: Qual o sentido de urgência do aquecimento global? O Brasil tem que ter imediatamente uma política de mudanças climáticas?

Carlos Nobre: Sem dúvida. O clima já mudou. O aquecimento de 0,75 grau no último século é uma pancada. Em cem anos, nós já andamos a metade do que o planeta andou em 125 mil anos. E como não tem mais jeito, um grau de mudança climática já se tornou inevitável, temos que ter já uma política de adaptação às mudanças. Estamos descobertos.

Valor: O que o senhor sugere?

Nobre: Não jogar a toalha e ficar queimando mais combustíveis fósseis. Não pensar que, no futuro, nossos netos e bisnetos se preocuparão em como viver em um planeta mais quente. A responsabilidade ética que temos com o planeta e com as gerações futuras nos obriga a minimizar o risco. Isso significa reduzir emissões e adaptar. Não é uma coisa ou outra, é junto, as duas. As políticas públicas têm que contemplar estes dois elementos.

Valor: Que adaptações?

Nobre: Nobre: Qualquer planejamento de expansão urbana na zona costeira tem que levar em conta o aumento do nível do mar. Se subir 50 cm, cidades costeiras vão ter que construir pequenos diques e aterros. Recife terá que ter diques de proteção para evitar que os rios inundem a cidade. Com 40 cm, a água já chegará em áreas urbanizadas mais baixas do Rio de Janeiro. Começamos a ter problemas, principalmente com ventos fortes e ressacas. A questão é que, por enquanto, não existe nenhum plano, nenhum estudo, nada.

Valor: E na agricultura?

Nobre: A agricultura brasileira tem tudo a perder. Com 4 graus de aumento na temperatura, o café arábica praticamente some de São Paulo. Haverá queda na área potencial da soja, do milho, do feijão, do arroz. Alguma coisa pode até ser que melhore, em clima mais quente. Quando se aumenta o nível de gás carbônico na atmosfera, as plantas gostam, porque fazem fotossíntese assimilando CO2 e o efeito pode ser de um aumento da produtividade. Mas o aumento da temperatura, dos eventos extremos, é mais prejudicial do que o aumento do CO2. Também ocorrerá diminuição dos recursos hídricos no Nordeste. A maior vulnerabilidade social que o Brasil tem é no semi-árido nordestino, com ainda menos água no solo.

Valor: E as adaptações, no caso do Nordeste?

Nobre: É um caso muito difícil. Acho que o Brasil não sabe como resolver o semi-árido nordestino. É uma população rural muito grande para o nível de agricultura que possa ser praticada ali. Mesmo que se aproveite, com eficiência agronômica, as áreas irrigadas, que são poucas, consegue-se empregar talvez 15% da população rural, com uma agricultura super moderna. O que se faz com os outros? Tem que ter outro modelo de desenvolvimento no semi-árido. As mudanças climáticas vão compor quadro ainda mais complicado.

Valor: É a mesma projeção da África?

Nobre: Sim. É na África que se supõe que o efeito climático será pior. Maior desarranjo ambiental, secas mais intensas, acesso à água mais dificultado, a produção de alimento em risco. Neste sentido, da ligação da pobreza com estas condicionantes ambientais, o semi-árido nordestino é a nossa África, é onde vamos sofrer mais.

Valor: Para onde tem que migrar a agricultura?

Nobre: Tem que ser desenvolvida nas áreas já desmatadas, não só na Amazônia, mas no Brasil inteiro. São 50 milhões de hectares de pastagens improdutivas no Brasil, sendo 15 milhões de hectares de áreas abandonadas na Amazônia.

Valor: O cenário mais otimista do IPCC é realista?

Nobre: O que o IPCC diz é que os seis cenários são equiprováveis e todos dependem das trajetórias socioeconômicas que a sociedade tome no século XXI. O cenário otimista é possível também. Se diminuirmos em muito as emissões, as concentrações vão se estabilizar. Mas todos os cenários são igualmente prováveis. Acho que a pressão da população mundial quando os extremos climáticos começarem a ocorrer vai ser muito grande.

Valor: São o aumento na intensidade dos furacões, as chuvas mais intensas que já se verificam, como as monções, na Índia?

Nobre: Isso e tempestades mais severas na América do Norte, por exemplo. Serão mais episódios de pancadas fortes, que causam inundações, como estão acontecendo mais vezes do que 50 anos atrás em São Paulo. É uma chuva com outra característica, que inunda. Água nunca é ruim, de modo geral, mas a nossa sociedade se adaptou a um certo padrão de chuva. Quando este padrão muda, o impacto é enorme na infra-estrutura. Isso já está acontecendo. Mais ventanias, secas mais intensas, principalmente nas regiões áridas e semi-áridas, furacões mais fortes e freqüentes. O que o aquecimento global faz é exacerbar alguma coisa que a natureza já fazia.

Valor: Por que a Amazônia é tão crucial?

Nobre: Por três razões. Em primeiro lugar, é um grande reservatório de carbono e perder este carbono para a atmosfera só vai acelerar o processo. Depois, é o lugar onde a evolução da vida atingiu o grau mais complexo, onde está a maior expressão da biodiversidade. Destruir este enorme patrimônio genético, sendo que não conhecemos nem 2% dele, é muito grave. E, finalmente, a Amazônia funciona como importante elemento do sistema climático global. Ali as chuvas são abundantes. Se desmatarmos toda a floresta, estudos estimam que as chuvas diminuiriam na região entre 10% e 20%. O aquecimento global indica a possibilidade de menos água ali. Isto é importante para a estabilidade, não só da região, mas de outros lugares.

Valor: É um bom caminho, então, investir em grandes unidades de conservação?

Nobre: É uma estratégia importante para brecar o ritmo desenfreado de expansão da fronteira agrícola em cima de terra grilada. O valor econômico da expansão da fronteira é irrealista. Não considera impostos, porque ali a clandestinidade é gigantesca, e a tecnologia, na média, é primária. Por isso o setor público tem que contribuir. Não só no comando e controle, mas para equilibrar o jogo. A atividade clandestina é sempre mais lucrativa. E o Brasil precisa liderar a economia da floresta.

Valor: O que isso significa?

Nobre: Este é um conceito novo, e não é meu. A primeira vez que o ouvi foi da geógrafa Bertha Becker, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ela usou uma frase que gostei muito: "Precisamos trazer valor econômico ao âmago da floresta". Agora, nós, a SBPC, a Academia Brasileira de Ciências e vários cientistas estamos propondo verdadeira revolução científica e tecnológica na Amazônia, que desenvolva as bases empresariais, sociais e econômicas de uma economia baseada no valor da biodiversidade.

Valor: Como seria?

Nobre: É desenvolver o uso econômico da biodiversidade. O que existe hoje é numa escala muito pequena, que não gera muito emprego e renda.

Valor: Dá para ter, na Amazônia, desenvolvimento sustentável em escala maior?

Nobre: Este é o grande desafio. Quando alguém começa a fazer cálculos econômicos dos potenciais usos da biodiversidade e compara com a produtividade média da pecuária na Amazônia, o uso econômico da biodiversidade ganha. O problema é a escala. A pecuária já entrou, 80% da área desmatada da Amazônia está na pecuária. A economia da floresta precisa de um novo elemento. As populações tradicionais da Amazônia têm um conhecimento muito válido, mas as novas populações, os filhos dos pecuaristas precisam ser treinados e capacitados para um novo modelo. Temos que desenvolver o conhecimento científico, a tecnologia. O erro clássico de países em desenvolvimento é que não gastam recursos nisso.

Valor: E o Brasil não é exceção à regra.

Nobre: Não, investe-se muito pouco em ciência e tecnologia na Amazônia. Tem que multiplicar por dez. É preciso avanço científico para conhecer mais as espécies, fazer o desenvolvimento tecnológico e a cadeia produtiva. Depois da descoberta, colocar o novo produto no mercado. E treinar uma imensa massa de pessoas na Amazônia para que elas vivam e se beneficiem da nova economia. Isso só pode ser feito com muito investimento público, porque não é algo que o empreendedor típico brasileiro faça por si próprio. O começo dessa mudança de paradigma econômico da Amazônia tem que, infelizmente ser puxada pelo setor público -- digo infelizmente porque as economias mais avançadas do mundo são aquelas em que o setor privado é o motor principal da economia. Para a Amazônia, o setor público tem que quebrar o gelo e romper o modelo precaríssimo de desenvolvimento econômico de pecuária de baixa produtividade.

Valor: Voltando às emissões, o Protocolo de Kyoto funciona?

Nobre: A minha avaliação é positiva. Vai resolver o problema do aquecimento? Não. Kyoto pode ter aí um efeito de 1% a 2% nas emissões globais, muito pouco, precisamos cortar 60%. Mas o protocolo tem grandes lições. Primeiro, fortaleceu o sistema ONU, que estava desacreditado. Depois, é o balizador de uma corrida tecnológica entre as grandes nações do mundo em busca dos métodos limpos de produção. Kyoto colocou a data, a hora que se dá o tiro para o começo da corrida. Se não fosse assim, levaria mais cinco ou dez anos para começar. Os países que assinaram Kyoto e que estão tendo sucesso nas suas implementações - como Alemanha e Inglaterra - não tiveram nenhuma perturbação do crescimento econômico. O PIB desses países tem crescido nas médias históricas. Aquilo que o presidente Bush vinha dizendo, que a economia americana ia sofrer, perder a competitividade, era bobagem. Hoje o discurso já mudou.

Valor: Mudou como?

Nobre: O aumento da eficiência energética é extremamente positivo na economia mundial. Nem que seja uma termelétrica onde se consiga duas vezes mais eficiência, está se emitindo menos carbono para ter a mesma energia. Ou mudar para ter escala em energia renovável, como eólica. Ou redesenhar a linha de produção, do alfinete ao avião, para emitir menos. Os países que pesadamente investem nisso estão notando que melhora a cadeia produtiva como um todo e se consegue reduzir as emissões sem perda econômica. Neste sentido, é interessante observar que os EUA não estão de fora.

Valor: Por que estão olhando para o etanol?

Nobre: Não só. As companhias americanas têm subsidiárias na Europa, e elas têm que atingir metas de redução. Cada país europeu está fazendo suas metas por setor, e estas empresas não podem ficar fora.

Valor: Alguns cientistas nos EUA assinaram manifesto propondo embargo à construção de novas termelétricas. O sr. concorda com isso?

Nobre: A justificativa econômica do embargo é o fato que, se melhorar a eficiência energética nos EUA, economiza-se de cara, com tecnologia totalmente disponível, 15% do gasto de energia. Não precisa construir novas usinas, basta modernizar as existentes e ser mais eficiente no uso. Já existem lâmpadas de iodo cem vezes mais eficientes que as incandescentes, várias vezes mais que as fluorescentes. São mais caras, mas mais duráveis. Só a mudança hipotética no sistema de iluminação de um país grande como os EUA, seria uma enorme economia de energia.

Valor: O que os empresários têm que fazer, na ótica do aquecimento global?

Nobre: A primeira coisa é olhar para o próprio umbigo - como fazer a empresa mais eficiente e com menos emissões. O enorme ganho de diminuição de emissões globalmente é do setor industrial, pode significar 5% a 8% de redução. Buscar outras maneiras de gerar energia, sem queimar óleo. E não surpreendentemente, quando o empresário faz isso, ganha dinheiro, porque moderniza a empresa. Só há que vencer a inércia de ter que mudar. Tem que ter um investimento inicial, mudar máquinas e métodos e pensar que o ganho será a longo prazo. Maior eficiência no uso de energia da indústria é um ganho para todos. Diminui emissões e é uma racionalização econômica para o empresário.

Valor: Plantar árvore adianta?

Nobre: Qualquer coisa que retire carbono adianta. Globalmente, dá para enfrentar o problema plantando árvore? Não. Mas tem que ter espaço para todas as soluções, não só para as grandes. Plantar árvore adianta. Enquanto ela está crescendo, está retirando gás carbônico da atmosfera pela fotossíntese.

Valor: Trocar o carro por modelo flex?

Nobre: Pode ser flex, mas não adianta nada se colocar gasolina ou gás. Tem que ser álcool.

Valor: Deixar de viajar de avião?

Nobre: Avião é uma emissão absurda de carbono, mas nossa economia hoje não pode prescindir destas viagens. A idéia é minimizar, se organizar melhor para resolver vários assuntos na mesma viagem. E pode neutralizar o vôo, comprando certificados de crédito de carbono. A neutralização resolve o problema do globo? Não. Mas é um passo positivo e simbólico de uma postura mais filosófica. Quando muitos agirem assim, será mais fácil implementar os próximos passos, que serão dolorosos. Não sou a favor de dogmas, a transição tem que ser racional. O mundo, hoje, depende da infra-estrutura que foi construída. Até mesmo para o Al Gore ser eficiente nas apresentações que faz em toda parte, precisa viajar de avião.