Título: Para Broda, falta de reformas ameaça a retomada argentina
Autor: Paulo Braga
Fonte: Valor Econômico, 11/01/2005, Especial, p. A10

A Argentina terminou o ano de 2004 com um ritmo de crescimento da economia em torno de 11%, e o nível de consumo neste verão deverá ser "apoteótico". Mas, "do mesmo modo que não se pode ser pessimista no curto prazo, é difícil ser otimista no longo prazo", ponderou o economista Miguel Angel Broda, um dos mais prestigiados consultores da Argentina. Ele diz que o país ainda não chegou à utilização plena da capacidade produtiva instalada, o que por enquanto permite continuar crescendo sem forte pressão inflacionário. Broda acredita que 2005 será um ano de boa expansão, mas abaixo dos 8% estimados para 2004, e prevê que a inflação este ano ficará em 7%. Além disso, ele acredita que o período de crescimento pós-crise da Argentina está sendo esticado pelo bom desempenho da economia global e dos vizinhos latino-americanos. "Quanto melhor se sair o Brasil, melhor será para a Argentina." Ele observou que a aceleração brasileira já aqueceu o comércio bilateral, e isso é positivo ainda que haja déficit argentino. Mas o economistas enxerga muitas nuvens no horizonte. Para ele, o nível de investimento atual (de 18% do PIB) não é suficiente para garantir um crescimento sustentável. Além disso, a atuação arbitrária do governo do presidente Néstor Kirchner introduz vários fatores de incerteza na economia, ao invés de eliminá-los. Um deles foi a proposta, aventada no começo de dezembro e posta de lado no final do ano, de pagar integralmente a dívida com o FMI para se livrar da ingerência do Fundo sobre a política econômica. Segundo Broda, com isso o governo passou a mensagem ruim de que não quer ser auditado e de que ampliaria sua necessidade de financiamento num momento em que negocia uma reestruturação de sua dívida externa em default com credores privados. A seguir, os principais trechos da entrevista. Valor: Como o sr. avalia a gestão do presidente Néstor Kirchner e do ministro Roberto Lavagna? O crescimento obtido neste ano pela Argentina teve mais a ver com questões conjunturais ou o governo fez uma boa administração? Miguel Angel Broda: A Argentina está em um período de recuperação excepcional. Nos últimos cinco meses, a economia cresceu a uma velocidade anual superior a 11%, e o ano [2004] terminou com um crescimento de mais de 8% e que vai "carregar" mais de 3% para este ano. A recuperação da Argentina tem sido muito parecida com a de países que passaram por crises semelhantes. A gestão de Lavagna e Kirchner manteve as duas condições principais para não haver crise, que é ter superávit fiscal e superávit em conta corrente. Estes dois fundamentos em ordem permitiram que a retomada natural, que acontece depois de uma forte queda, pudesse se materializar. O notável, comparando a Argentina com outras experiências, é que, em geral, quando se chega ao décimo trimestre há um virada técnica e começa a desaceleração; e, apesar disso, a Argentina continuou acelerando. O país está em um período de recuperação em que o mundo anda muito bem, com a América Latina tendo seu melhor ano dos últimos sete e quando todos os vizinhos estão em períodos de forte crescimento. O ano terminou e provavelmente vamos ter um verão apoteótico, com muito consumo agregado. Valor: Mas dezembro deve ter sido o primeiro mês desde o início da recuperação em que haverá déficit... Broda: Isso ocorre principalmente pelo aumento de gastos com o décimo-terceiro. E temos uma política fiscal que, apesar de ter superávit primário, passou a ter um superávit menor a partir da segunda metade do ano. O governo montou um conjunto de políticas ativas, com aumento de aposentadorias, salários e antecipando o pagamento do décimo terceiro a aposentados e funcionários públicos, e cresceram ainda os gastos com obras públicas. A média de superávit do ano era de 1,5 bilhão de pesos por mês, e em dezembro vamos ter um déficit de 1 bilhão de pesos. Sem as políticas ativas do último trimestre, o superávit seria de mais de 22,5 bilhões de pesos, e agora vai ser de 18,5 bilhões. Na último trimestre do ano, provavelmente houve cinco razões que estimularam o aumento do gasto. Enquanto há capacidade ociosa, o nível de atividade é determinado pelo aumento da demanda doméstica. Esta demanda está sendo impulsionada, por um lado, pela queda na taxa de poupança, e por outro lado há uma substancial redução da saída de capitais. Além disso, temos uma política monetária muito expansiva. Valor: O nível baixo de investimentos e o crescimento da demanda não tendem a criar um problema de oferta e preços? Se se analisam os setores industriais, muitos estão com mais de 80% de utilização da capacidade instalada.

Do mesmo modo que não se pode ser pessimista no curto prazo, é muito difícil ser otimista no longo prazo"

Broda: A inflação ficou dentro da meta do ano [2004], vamos ter entre 5,8% e 6%. Sem dúvida, quando se esgotar a capacidade ociosa, poderemos ter um risco de aumento na inflação. Mas essa taxa de inflação vai depender do manejo da política monetária quando ocorrer esse momento. Hoje, o consenso de inflação para 2005 é de 7%. Pode ser maior que 7%, mas isso vai depender do grau de autonomia que tenha o BC para cumprir a meta de 2005, que está entre 5% e 8%. Valor: O sr. acha que o banco central tem autonomia? O presidente do BC, Martín Redrado, diz que o objetivo é seguir metas de inflação, enquanto que o ministro Lavagna e o presidente Kirchner já indicaram querer manter o dólar alto. Broda: O objetivo do modelo produtivo da Argentina é manter um peso depreciado para dar rentabilidade aos substitutos dos importados e aos bens exportáveis. Com esse objetivo, enquanto há crescimento da demanda de dinheiro, o BC pode ao mesmo tempo comprar dólares no mercado, manter alto o câmbio e ter uma taxa de inflação na meta. À medida que se for monetarizando a economia e for se esgotando a capacidade instalada, começam a ser mais conflituosos esses objetivos. Quando se chegar a essa situação, vamos sentir se há autonomia do BC para perseguir uma política monetária com metas de inflação ou se, com o hiperpresidencialismo argentino, o BC não conseguirá manter a autonomia necessária. E é por isso que há dúvida sobre qual será a inflação e o câmbio em 2005. Valor: Este ano é um ano eleitoral. O sr. acha que haverá pressão para aumentar o gasto? Broda: Eleitoralmente, o partido governista [o PJ, Partido Justicialista ou peronista] basicamente não tem oposição. Vamos a eleições parlamentares [para o Congresso] nas quais o partido peronista vai conseguir 45% dos votos, e o segundo partido, qualquer que seja, vai ter menos de 15%. O triunfo eleitoral do PJ, se ele mantiver a coalizão interna, está praticamente descontado. De todas as maneiras, a verdade é que, do mesmo modo em que não se pode ser pessimista no curto prazo, é muito difícil ser otimista no longo prazo. Hoje se recuperou a taxa de investimento, mas a cifra, de 18% do PIB, está muito longe dos 22% a 24% que seriam necessários para ter um crescimento sustentável de longo prazo. E as dúvidas sobre a reação dos investimentos se devem basicamente a duas questões. Por um lado, se é sustentável o superávit fiscal e em conta corrente, e se é um objetivo do presidente mantê-lo. Por outro, estão as incertezas em relação a questões estruturais de longo prazo. Valor: E quais seriam essas questões de longo prazo? Broda: Você vê que o presidente está obcecado em não renovar o acordo com o Fundo [Monetário Internacional] e queria pagar o que o país deve pela simples razão de não querer se submeter às condições que a reestruturação da dívida com o Fundo implicam. E algumas dessas condições são as que geram a diminuição da incerteza. Sem dúvida a Argentina estaria melhor se renegociasse os contratos com as empresas privatizadas, se tivesse uma lei de co-participação federal com incentivos "à brasileira" [a lei de responsabilidade fiscal], para garantir a sustentabilidade fiscal. Apesar disso, o governo argentino cogitou pagar ao Fundo e endividar-se a juros mais altos para não permitir que o FMI lhe impusesse condições. Temos claramente muitas decisões arbitrárias tomadas por um governo hegemônico e com muita autoridade concentrada em pouca gente. Valor: Está claro para o sr. como o governo quer lidar com o FMI? Broda: Para mim é claro o que pensa o governo em relação ao FMI, o que não significa que sei o que vai acontecer. O presidente tem uma visão política de que seu futuro depende crucialmente de não seguir as receitas do Fundo. Kirchner acredita que a economia argentina vai muito bem, e de fato vai, e que não é necessário fazer algumas reformas estruturais que o FMI e o resto do mundo pedem à Argentina. Valor: Por exemplo? Broda: Ele acha que não é necessário auditar os bancos públicos, que são agentes da política ativa do governo, que não é preciso acelerar a saída da moratória, que é desnecessário renegociar os contratos com as [empresas] privatizadas, que estão violados há três anos, que não é preciso criar leis de responsabilidade fiscal. O governo crê que essa política econômica é a política dos incompetentes de Washington. Valor: E o governo, o que pensa em fazer no lugar disso?

Na eleição para o Congresso, o peronismo terá 45% dos votos; o segundo partido, qualquer que seja, vai ter menos de 15%"

Broda: O presidente e seu entorno se iludiram com alguns comentários da China, de que [os chineses] estavam cansados de com o excesso de dólares comprar títulos americanos e subsidiar o consumidor dos EUA ao produzir taxas mais baixas. Assim, poderia haver a possibilidade de que, em vez de comprar bônus do Tesouro [dos EUA], o governo da China poderia dar um empréstimo à Argentina em troca de dívida e diversificar suas reservas. Isso terminou sendo um "negócio da China". Ao fracassar essa hipótese, o governo começou a pensar em pagar as obrigações com o Fundo conforme vão vencendo, em quatro ou cinco anos, e tratar de fazê-lo de maneira que não tivesse de ter um acordo e cumprir as "malditas" metas trimestrais monetárias, fiscais e sobretudo estruturais. O Fundo deve ter ficado encantado com a possibilidade de a Argentina pagar o que deve. Valor: É possível cancelar a dívida de US$ 15 bilhões com o FMI? Broda: Do ponto de vista da quantidade de reservas, poderíamos pagar. Em 2005 e 2007, assumindo que se prorrogam os vencimentos postergáveis, a Argentina teria que colocar mais dívida ou obter mais recursos do Tesouro, mas não seria uma missão impossível. O problema é se isso é uma política boa ou má. É uma má notícia explicitar isso antes de reestruturar a dívida, porque estamos dizendo ao credor duas coisas: vamos ter mais necessidade de financiamento, e portanto sobram menos fundos para que ele receba; e, segundo, estamos dizendo que não queremos que ninguém nos audite, e assim sobe o risco de que a dívida não seja honrada. Outro problema é que estaríamos substituindo dívida barata por dívida cara. No caso do Brasil, por exemplo, é diferente. Se o Brasil não renovar, provavelmente a comunidade internacional não duvidará que Lula vai manter uma macroeconomia ortodoxa. Enquanto isso, dizemos ao mundo que são as restrições que nos incomodam. É uma forma de explicar as coisas que funciona exclusivamente para o público interno. A terceira razão é que, ao dizer não ao Fundo, estamos incrementando a incerteza de longo prazo. Porque o comportamento macroeconômico da Argentina nos últimos 30 anos tem sido o de um garoto indisciplinado, e os garotos indisciplinados necessitam disciplina. Não me animo a dizer que o cenário mais provável é que a Argentina não renove com o Fundo e pague o que deve nos próximos anos. Acho que o anúncio foi inoportuno. Valor: O sr acha que o governo perdeu o "timing" para reestruturar a dívida? Broda: Nos dois primeiros anos depois do default, o objetivo de política econômica era não sair do default. Na reunião de Dubai, em setembro de 2003, a Argentina apresentou uma proposta de pagar US$ 6 bilhões dos US$ 82 bilhões do valor nominal dos títulos, ou seja, um desconto de 92%. Mas foi só em fevereiro deste ano que, por pressão do G-7, a Argentina começou a trabalhar para realizar a reestruturação. Em junho, o país elevou a oferta para basicamente US$ 20 bilhões. Se o processo começar em 17 de janeiro, ainda há condições internacionais para que, mesmo com a oferta tão dura da Argentina, consiga-se a adesão de 60% dos credores. Se for assim, estaremos em condições de negociar o acordo com o Fundo em maio ou junho. Valor: Como o sr. acha que o crescimento do Brasil pode influenciar o desempenho da economia argentina? Broda: A recuperação do Brasil é muito boa para a Argentina, quanto melhor se sair o Brasil, melhor será para a Argentina. A relação comercial é muito mais sensível ao nível de atividade que ao câmbio. A recuperação já significou uma recuperação das exportações argentinas ao Brasil, e mesmo com déficit isso é uma boa notícia. Valor: O Mercosul ajuda ou atrapalha a Argentina? Broda: Essa é uma pergunta muito mais difícil. Neste estado de união aduaneira superincompleta e sem marco institucional, o que possuem os dois países são dirigentes totalmente partidários do Mercosul. Do lado brasileiro, o país precisa de uma plataforma para ser o representante da região. E é por isso que o Brasil está disposto a fazer algumas concessões à Argentina. A estratégia da Argentina, de ser sempre o contrapeso do Brasil, fez com que o país passasse a ter um papel secundário. Isso porque perdemos peso específico, e nossa diplomacia tem um grande contraste com as estratégias coerentes do Itamaraty, ainda mais agora, quando a política externa está nas mãos do presidente. Minha impressão é que o melhor para a Argentina é imitar o Chile e fazer acordos de livre comércio com todos os que se dispuserem, sem descuidar do Mercosul mas sem se concentrar no Mercosul. Valor: Mas, nesse caso, terminaria a união aduaneira. Broda: É um dique com tantos buracos... Antes se falava em risco de conflito entre os dois países, planos de ação, e nesse sentido o Mercosul foi benéfico, não há dúvida. Do ponto de vista de estratégia comercial externa, tenho sérias dúvidas.