Título: O limite do benefício efetivo nos tratados contra a bitributação
Autor: Baker, Philip
Fonte: Valor Econômico, 07/05/2007, Legislação & Tributos, p. E2

As convenções para evitar a bitributação têm uma função crucial para remover obstáculos ao comércio internacional, investimento e circulação de pessoas, ao eliminar ou reduzir a dupla tributação internacional. Com freqüência, isto é realizado através da redução da tributação no Estado da fonte do rendimento. Como essa redução é atrativa, ela pode levar à utilização abusiva na forma de escolha do tratado mais favorável ("treaty shopping"). Para evitar isto, muitos tratados contêm dispositivos contra seu uso abusivo.

O dispositivo antiabuso mais comum - geralmente encontrado nos artigos relativos a dividendos, royalties e também com freqüência no artigo referente a outros rendimentos - é o conceito de beneficiário efetivo ("beneficial owner"). Esse artigo estipula que a tributação reduzida no país da fonte somente se aplica quando o residente no outro Estado contratante é o beneficiário efetivo do rendimento. Esta exigência foi introduzida no modelo de convenção da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em 1977, em que se baseiam as mais modernas convenções para evitar a bitributação. Apesar de existir na prática há mais de 30 anos, ainda há dúvidas reais sobre seu escopo e significado, o que leva a incessantes disputas judiciais e muita reflexão. O seu sentido é particularmente crucial, uma vez que ele pode impedir a aplicação da tributação reduzida do país da fonte. É surpreendente, portanto, que o seu conceito ainda continue não sendo claro.

Dois recentes casos na Europa discutiram a limitação do beneficiário efetivo. Embora as decisões estejam longe de encerrar os debates, elas fazem parte de um cenário de controvérsias e polêmicas que cerca o tema. Primeiro, no Reino Unido, o Tribunal de Apelação decidiu em 2006 o caso Indofood. Esse caso tratou da interposição de uma empresa na Holanda para receber os juros a serem repassados aos titulares do rendimento, que concederam o empréstimo, sediados em outros países. O tribunal considerou que a empresa na Holanda não era a beneficiária efetiva dos juros recebidos por ela, pois não poderia retê-los, devendo repassá-los aos beneficiários finais. Este caso talvez seja um exemplo extremo em que uma companhia utiliza obviamente "treaty shopping" em benefício próprio.

Mais recentemente, em dezembro do ano passado, o Conselho de Estado (Conseil d´Etat) francês decidiu um caso relativo a usufruto. Uma empresa estabelecida nos Estados Unidos cedeu por três anos a um banco no Reino Unido o direito de receber dividendos preferenciais de uma subsidiária da empresa americana que está estabelecida na França. O banco britânico receberia de acordo com a convenção entre França e Reino Unido um grande proveito econômico pela aplicação de uma retenção menor de imposto na França e pelo direito de crédito do imposto da pessoa jurídica pago pela subsidiária americana residente na França, que distribuiu os dividendos.

-------------------------------------------------------------------------------- A discussão sobre a condição de usufruto das convenções para evitar a bitributação é pauta em vários países --------------------------------------------------------------------------------

Para gozar destes direitos, o banco deveria ser o beneficiário efetivo dos dividendos. Tecnicamente, o banco receberia os dividendos para seu próprio benefício e uso, não sendo obrigado a repassá-los a terceiros. Entretanto, o tribunal francês entendeu que a noção de beneficiário efetivo era uma doutrina contra o abuso de direito de muito maior amplitude. Eles entenderam que o usufruto realizado era abusivo, pois designado a obter vantagens que não eram asseguradas pela convenção entre os Estados Unidos e a França. Este entendimento possibilita uma abrangente aplicação da noção de beneficiário efetivo para afastar uma série de arranjos abusivos.

Esses dois casos colocaram em evidência toda a questão da abrangência da definição de beneficiário efetivo e a importância do tema, que será tratado, no Brasil, durante o II Congresso Internacional de Direito Tributário do Rio de Janeiro. Discutir a condição para usufruir das convenções para evitar a bitributação é pauta para vários países, incluindo os da América Latina. Obviamente, é crucial para as autoridades fiscais e para os contribuintes, particularmente empresas multinacionais e outras que operam no mercado internacional, entenderem o alcance e significado daquele conceito. Será também muito interessante ver como a comunidade internacional reagirá a estes recentes desenvolvimentos.

Philip Baker é professor de direito tributário internacional da University of London e palestrante do II Congresso Internacional de Direito Tributário do Rio de Janeiro, que ocorre de 9 a 11 de maio

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