Título: O luxo da ilegalidade
Autor: Barros, Bettina
Fonte: Valor Econômico, 04/05/2007, EU & Fim de Semana, p. 14

Referência em móveis de luxo, designers da moda e preços voltados para a classe A, as lojas da alameda Gabriel Monteiro da Silva, no nobre bairro dos Jardins, em São Paulo, correm o risco de estar vendendo peças produzidas com madeira extraída de forma ilegal das florestas nativas brasileiras. Grandes consumidoras dessa matéria-prima, raras são as que adotam a certificação em seu portfólio de produtos - o melhor mecanismo para rastrear toda a cadeia produtiva, do corte da árvore até o produto final chegar ao consumidor. Esse procedimento garante que a madeira foi retirada de áreas legais e atende aos critérios de manejo sustentável.

Não é preciso esforço para constatar: certificação florestal é um conceito estranho para o brasileiro. Na Gabriel, vendedoras simpáticas entreolham-se e sorriem amarelo quando abordadas sobre o assunto. Uma diz: "Estaremos providenciado e anunciando" a certificação, sem parecer entender ao certo o que isso significa. Outra liga ao fornecedor e, diante da negativa, esclarece que a loja trabalha só com carvalho - "tudo bem, essa madeira não está em extinção". Em visita às lojas da luxuosa alameda, o Valor verificou que só uma tem o "selo verde" que identifica a certificação.

O que ocorre com o setor moveleiro se repete em outros segmentos da economia e atinge vários Estados. A madeira predatória está em quase tudo à nossa volta: de andaimes, portas e esquadrias à lenha que aquece fornos de pizzarias e lareiras. A grande prejudicada é, como sempre, a Amazônia, que abastece entre 60% e 80% do mercado doméstico, segundo estimativas do governo e de ONGs ambientais. O Estado de São Paulo é o principal cliente, responsável por 20% do consumo total nacional.

"Como a certificação ainda é pequena, tanto em termos de área quanto número de empresas, grande parte da madeira que chega à ponta final tem origem incerta", diz Marcelo Marquesini, do escritório do Greenpeace em Manaus. "A certificação é a única maneira de ter certeza de que a madeira é legal. A que não tem esse documento até pode ser legal, mas a experiência mostra que a maioria não é."

Estudo do Imazon, uma das mais sérias ONGs ambientais, com sede em Belém, mostra que a madeira predatória da Amazônia representa 64% do volume consumido na indústria de móveis finos no Brasil e 36% na de móveis populares. Quando se olha para o setor de casas pré-fabricadas, o índice sobe para 98%. Isso pode estar relacionado a outro dado: só 0,31% das terras na Amazônia é certificada.

Os números jogam uma pá de cal no argumento bastante comum de que a parte de baixo do Brasil não está associada ao problema de desmatamento da maior floresta tropical do mundo. "O Sul e o Sudeste financiam a exploração da Amazônia", afirma o biólogo Roberto Waack, um especialista no assunto.

Embora a extração da madeira amazônica ocorra há décadas - começou com os "soldados da borracha", no início do século XX, e foi impulsionada nos anos 1970 pelo governo militar como forma de povoar a região e unificá-la ao país -, a ilegalidade só foi admitida oficialmente em 1997, em relatório interno da Associação Brasileira de Inteligência (Abin). Já naquela época, a Abin estimava que 80% da madeira amazônica era ilegal.

O caminho que culmina com a árvore no chão é o mesmo desde sempre: o grileiro limpa a terra para semear o pasto e, em um segundo momento, receber o gado.

O grileiro existe porque 45% da área da Amazônia ainda são públicas - o que significa uma imensidão de terras sem lei e de ninguém. Somente no Pará, que ao lado de Rondônia e Mato Grosso lidera o ranking de fornecedores de madeira predatória, o governo estima haver 30 milhões de hectares nas mãos de grileiros. Para ganhar a "titularidade" da terra, eles obtêm documentos falsos forjados em cartórios de registro de imóveis, sacramentando o ditado de que a posse de terra no Brasil é uma questão de fato, não de direito.

Consumidores de madeira, como o setor moveleiro e da construção civil, não necessariamente compactuam com esse esquema. São, muitas vezes, vítimas do complexo modus operandi que envolve o tráfico de documentos públicos para legalizar a madeira ilegal. Em São Paulo, a madeira comprada por construtoras vem, salvo um ou outro caso, dos quase 2 mil depósitos do Estado. Estes, por sua vez, adquirem as toras diretamente das serrarias da Amazônia. Em tese, elas são todas regularizadas. "Mas há muita madeira esquentada no mercado", alerta Marquesini, do Greenpeace. Em 2006, o governo federal iniciou o processo de digitalização de autorizações de desmatamento, onde há maior incidência de fraudes, mas o sistema ainda contém falhas.

Só há duas maneiras de a madeira não certificada ser legal. A primeira é quando o desmatamento foi permitido pelo Ibama, para fins de agricultura ou criação de gado. A segunda é quando o Ibama aprova planos de manejo, que são projetos baseados em estudos que associam engenharia com ecologia. "A questão é que nem sempre as regras são cumpridas", explica Luís Fernando Guedes Pinto, diretor da Imaflora, uma das seis credenciadoras habilitadas a fazer a certificação de madeira no Brasil. Muitas vezes, diz ele, desmata-se mais do que o autorizado ou se cortam árvores que não estavam previstas no manejo. Todo esse excedente de madeira, portanto, é ilegal.

"O próprio modelo de desenvolvimento econômico para a região propiciou o caos fundiário e, dessa forma, o cenário de ilegalidade que vemos hoje", diz Guedes Pinto. Segundo ele, a falta de controle territorial ajuda a explicar a pequena área certificada no país.

Dos 420 milhões de hectares do bioma Amazônia, apenas 1,3 milhão é certificado, segundo o FSC Brasil (Conselho de Manejo Florestal, em inglês), o mais importante sistema de certificação florestal do mundo. Outros 2,4 milhões de hectares estão em áreas de reflorestamento, sobretudo de eucalipto e pinus.

Quase todo o volume de madeira certificada vai para o exterior. "Praticamente 80% vai para fora. Só agora o mercado interno começa a acordar para isso", diz Ana Yang, secretária executiva do FSC Brasil. "Nosso grande filão é a Europa, onde muitos países só podem importar madeira certificada." Ela cita o exemplo da Holanda, onde todas as construções públicas têm de ser feitas com certificação.

A falta de uma legislação específica que obrigue o uso da madeira certificada já vem sendo discutida há uma década no Brasil, quando o conceito de manejo florestal começou a ser suscitado na Amazônia. Um grande entrave à expansão da utilização dessa madeira, no entanto, é o preço. Ele chega a ser 30% mais alto do que o da madeira não certificada. Para os varejistas, é o que se paga por ser ambiental, social e legalmente correto.

"O custo de processamento da madeira é mais alto", afirma Lissa Carmona, da Etel Interiores, a única loja da alameda Gabriel Monteiro da Silva que apresenta o selo verde do FSC. "Pagamos impostos e auditoria anual para a madeira certificada, tudo isso é dinheiro a mais que os outros não colocam", observa. "Também cortamos a madeira de uma maneira mais sofisticada, retirando uma média de 22 metros cúbicos por hectare. Dessa forma garantimos a perpetuação das espécies - mantemos vivos mãe, filhos e netos -, que é a base do manejo sustentável. Os outros fazem o corte raso, passam a serra elétrica e pronto."

Com lojas em Düsseldorf e representantes em Lisboa, Zurique, Nova York e Los Angeles, a Etel destina 30% de sua produção ao mercado externo. "Lá fora esse mercado está estabelecido", diz Lissa, que depois da fábrica em Valinhos (SP) fincou o pé na Amazônia com a abertura de uma unidade em Xapuri (AC), onde 100% da madeira já é certificada. "Aqui o mercado não tem consciência dessas coisas".

No showroom em São Paulo, os móveis da Etel exibem o selo do FSC, seu diferencial frente aos concorrentes. "Somos high-end. Nosso princípio é esse", diz ela. "Ninguém é 100% certificado como nós. Se souber, me conte."