Título: "Política econômica conservadora é compensada com mudanças morais"
Autor: Felício, César
Fonte: Valor Econômico, 04/05/2007, Especial, p. A16

O bispo de Petrópolis, dom Filippo Santoro, destacou-se como um articulador político do então cardeal do Rio de Janeiro, dom Eugênio Sales. Na condição de bispo auxiliar do Rio, coordenou a criação da Pastoral Política da arquidiocese, em 1999. Desta posição, manteve por cinco anos reuniões mensais com o meio político do Rio de Janeiro. Trabalhou para barrar projetos que suavizem o tratamento legal da utilização de drogas leves ou favoreçam o uso de preservativos sexuais. Foi também um dos negociadores da lei que implantou o ensino religioso no sistema de educação pública do Rio, em 2003. No ano seguinte, assumiu a diocese no interior do Estado.

Italiano de Bari, dom Filippo está no Brasil desde 1984, quando chegou a convite de dom Eugênio para implantar no Rio o movimento Comunhão e Libertação, de orientação conservadora. Concedeu em São Paulo a seguinte entrevista ao Valor:

Valor: O governo promove, por meio do novo ministro da Saúde, José Gomes Temporão, a discussão de uma nova agenda, composta por temas como a liberalização do aborto. Isto pode unir a Igreja contra o presidente Lula?

Dom Filippo Santoro: Pode ser, mas o grau de divergências não torna isto fácil. O fato é que já houve uma experiência de união de esforços para lutar contra mudanças na legislação sobre o aborto muito recentemente, e o mesmo se deu para impedir as pesquisas com células tronco derivadas de embriões. Involuntariamente, o governo federal está ajudando a fazer uma compactação do mundo católico, mas veja como não é fácil em certos setores mais politizados: o Conselho Nacional dos Leigos do Brasil fez agora um documento para a Conferência Episcopal Latino-Americana. Mencionou a defesa da vida contra os males da sociedade, mas sequer citou a luta contra o aborto. É difícil recompactar a Igreja, sobretudo para agir em relação ao Lula.

Valor: Por que?

Dom Filippo: Porque parte da Igreja é parceira de lutas, de caminhadas. Já demonstrou que suporta grandes frustrações.

Valor: Como o senhor interpreta a iniciativa do governo de discutir estes temas?

Dom Filippo: No primeiro mandato de Lula, o presidente jamais entrou em qualquer tema moral. Agora, no segundo mandato, adota uma pauta com pontos contrários à Igreja Católica.

Valor: Que pontos são estes?

Santoro: Além do aborto, pode entrar também a descriminalização das drogas, as pesquisas com células tronco, a união civil homossexual e o ensino religioso em alguns Estados. Tudo faz parte de um conjunto que só está piorando para nós. Há uma clara promoção de mudança de valores morais, que parte do governo federal, com interesses em realizar uma política de compensação.

Valor: E qual a razão desta guinada?

Dom Filippo: Existe uma corrente ampla da esquerda, do PT, que é herdeira daquela esquerda secularista, laica, de larga tradição mundial em uma certa militância anti-clerical. Estes setores ficaram frustrados de maneira permanente no governo. Teve a questão dos transgênicos, da política de juros, da política de reforma agrária, enfim, uma série de questões. Estão sendo compensados agora.

Valor: Compensados de que maneira? O governo procura mostrar-se próxima da esquerda em certas áreas da administração para compensar o conservadorismo em outras?

Dom Filippo: Exatamente. Lula é um conservador no plano econômico e agora quer mostrar-se totalmente radical do ponto de vista cultural e comportamental. Está em completa consonância com uma mentalidade secularizante global.

Valor: Isto não é aplicável também ao que acontece em governos de matriz esquerdista em outros países com os quais a Igreja teve atritos recentes, como o da Espanha e o da Itália?

Dom Filippo: Sem dúvida. Lá também existe um mecanismo de compensação semelhante. Este enorme ataque à religião é um processo global, incentivado até por organismos multilaterais, como a ONU. É uma ofensiva que remete ao iluminismo anti-religioso. É a isso que o papa Bento XVI reage, ainda que a Igreja atual não pode ser resumida a um aspecto reativo. A Praça de São Pedro não fica lotada todas as semanas para que se ouçam ataques ao mundo laico. (CF)