Título: Argentina já admite reabrir negociação de calote com fundos
Autor: Felício, César
Fonte: Valor Econômico, 28/02/2013, Internacional, p. A17

O governo da Argentina ofereceu ontem, no começo do julgamento do processo que sofre de fundos na Corte de Apelações de Nova York, reabrir a reestruturação da dívida do país para a inclusão dos títulos que ficaram fora das negociações de 2005 e 2010.

"Estamos dispostos a tratar todos os credores da mesma forma, os que entraram e os que não entraram na renegociação e neste sentido o caminho proposto é o que já foi estabelecido nos acordos anteriores", afirmou após a audiência o ministro da Economia, Hernán Lorenzino em entrevista ao canal governista de TV "C5N".

Ao lado do ministro, contudo, o vice-presidente, Amado Boudou, deixou entreaberta a possibilidade da Argentina desconhecer a sentença, caso sejam mantidos os termos da decisão de primeira instância, que obriga o pagamento nominal e à vista dos papéis. "De maneira alguma a Argentina vai romper sua própria lei. Só vamos pagar da maneira que já reestruturamos", disse Boudou.

As negociações anteriores, que envolveram 91% dos US$ 81,5 bilhões em default no colapso financeiro e econômico de 2001, estabeleceram um desconto sobre o valor dos papéis de 66%.

O julgamento começou com a apresentação oral dos advogados dos fundos e dos do governo argentino e com as manifestações de outras partes interessadas, como o representantes do governo dos Estados Unidos, contra a decisão de primeira instância que condenou a Argentina. Não há prazo para os três juízes da Corte de Apelações darem a sentença: poderá ser nesta quinta-feira ou dentro de meses.

A estratégia do governo argentino foi o de acenar com dois riscos de alcance global: que o pagamento da dívida não renegociada inviabilizaria qualquer reestruturação de dívida soberana no mundo e que levaria a Argentina a um novo default, já que os credores que aceitaram participar da renegociação poderiam requerer ressarcimento sobre o valor dos títulos que aceitaram no passado, o que tornaria a conta impagável.

Segundo o ex-secretário de Finanças da Argentina, Guillermo Nielsen, negociador do primeiro acordo de reestruturação de dívida, o primeiro argumento é frágil: os credores que aceitaram o desconto só teriam direito a ressarcimento caso uma oferta mais vantajosa fosse feita pelo governo argentino de forma voluntária aos demais credores, "o que não é o caso de uma decisão judicial", afirmou em entrevista ao Valor.

Desta maneira, um novo passivo argentino ficaria restrito ao universo de US$ 11 bilhões que corresponde aos títulos não renegociados, sendo que a sentença em Nova York não é automática: caso confirme a decisão da primeira instância, a sentença se aplicaria inicialmente apenas em relação aos US$ 1,3 bilhão em títulos do grupo liderado pelo fundo NML, das ilhas Cayman. As reservas argentinas somam US$ 41,8 bilhões. A Corte de Apelações poderia ainda rever a modalidade de pagamento. A decisão em primeira instância obriga o pagamento à vista.

A possibilidade de um risco sistêmico sobre as renegociações soberanas é um argumento mais sólido, já que a sentença em primeira instância dada pelo juiz Thomas Griesa estabelece que os fundos com dívidas não reestruturadas passarão a ter precedência sobre pagamentos em relação aos demais, o que poderia ser aplicado a outros países. Foi esse risco que levou o governo dos Estados Unidos a se manifestar como parte interessada ("amicus curiae") no caso.

"Para evitar este risco, a Corte de Apelações precisaria delimitar o alcance da sentença, sem entrar em consideração no mérito. É possível fazê-lo", disse Nielsen. Segundo o ex-secretário, "basta estabelecer que a sentença só vale para países que impedem por meio de legislação local novas reestruturações, que receberam moção de censura do FMI ou que possuem dívida não honrada com o Clube de Paris há mais de dez anos. A Argentina é o único país que está nas três situações citadas", disse.

A ação dos chamados fundos "abutres" poderia ter sido evitada caso o governo do país não tivesse mudado de forma abrupta de estratégia logo após a reestruturação da dívida em 2005, segundo afirmou Nielsen

A primeira renegociação foi feita por uma equipe econômica comandada pelo então ministro da Economia, Roberto Lavagna. Fortalecido pelas eleições parlamentares daquele ano, Kirchner demitiu Lavagna, que tinha pretensões políticas e foi candidato presidencial pela oposição em 2007. Nielsen, junto com toda a equipe de então, foi afastado do cargo.

"A Argentina passou a viver com a sensação que o problema da dívida estava equacionado", comentou o ex-secretário. De acordo com Nielsen, desde antes da reestruturação, já se sabia que parte dos títulos havia sido adquirido por fundos especializados em cobrar dívidas judicialmente para obter 100% do valor nominal dos papéis, comportamento normalmente chamado no mercado de "abutre".

"Estava claro que estes fundos não entrariam na renegociação, e a estratégia que se desenhava era a de usar a "class action", um instrumento jurídico vinculante nos Estados Unidos, de maneira que uma decisão judicial favorável a um fundo que não envolvesse a quitação nominal seria estendida a todos os demais na mesma situação", comentou.