Título: Privatização foi feita na marra e vencida por um azarão
Autor: Durão, Vera Saavedra
Fonte: Valor Econômico, 04/05/2007, Empresas, p. B6

A privatização da Vale, há dez anos, foi marcada por forte resistência e uma inesperada surpresa. O leilão de venda foi contestado por vários setores da sociedade contrários à desestatização da mineradora, criada em 1942 pelo então presidente do país Getúlio Vargas. Mais de cem ações liminares de todo canto do país fizeram o leilão ser adiado várias vezes na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, tentando impedir a transferência a grupos privados de 42% do capital votante, que representariam o controle da companhia.

Liminares chegaram à Justiça até no dia marcado para o leilão. Isso mobilizou um batalhão de advogados do BNDES, coordenador do processo de venda, para derrubá-las. A Vale, assim como Petrobras, era considerada uma estatal emblemática, intocável, e devia ficar sob controle do governo, mas o ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso ignorou esse dogma. A Vale, mesmo como estatal, era conhecida, e respeitada mundialmente, como maior produtora e exportadora de minério de ferro.

A surpresa do leilão ficou por conta do Consórcio Brasil, arquitetado e liderado por Benjamim Steinbruch, principal acionista e presidente da Cia. Siderúrgica Nacional (CSN), o qual ganhou ares de um "grupo verde-amarelo", que representava o capital nacional. Formado quase que na última hora, era considerado o azarão na disputa. Contou com o aval de um senhor baixinho que comandava o banco americano NationsBank, que pôs à sua disposição um cheque de US$ 1,5 bilhão. Ao lado de Steinbruch estavam os fundos de pensão Previ, Petros, Funcef e Cesp, além do banco Opportunity.

O Valecom, consórcio montado pelo grupo Votorantim, de Antônio Ermírio de Moraes, era apontado como o favorito e incontestável vencedor. O empresário - que inicialmente tinha do seu lado Steinbruch e os fundos de pensão -, arregimentou forças de causar inveja: a gigante sul-africana Anglo American, um grupo de siderúrgicas japonesas lideradas pela Nippon Steel, além da trading Mitsui e seu parceiro brasileiro, a Caemi, então sob o comando dos netos do fundador Azevedo Antunes.

O grupo dissidente saiu do Valecom devido a desentendimentos sobre a composição do consórcio e sobre quem seria responsável por comandar a Vale no futuro.

O leilão, após removidas todas as barreiras judiciais das liminares, durou cinco minutos. Com lances frenéticos, o consórcio de Steinbruch foi cobrindo todos as ofertas feitas pelo Valecom. Com um ágio de 19,9% sobre o preço mínimo estipulado pelo BNDES, o Consórcio Brasil pagou R$ 3,3 bilhões pelo controle da Vale e Steinbruch tornou-se, da noite para o dia, um dos maiores e mais admirados (por que não até odiado?) empresários do país.

"Ao vencedor, as batatas", teria dito Antônio Ermírio quando foi impedido de oferecer um novo lance que cobrisse o último de Steinbruch. Segundo informações da época, o sócio japonês disse "Pára aí." depois que Ermírio ofereceu R$ 31,80. O teto estipulado era de R$ 31,20. O consórcio Brasil cobriu com R$ 32,20 e o sonho acabou para a Votorantim antes do que se imaginava que fosse seu fôlego.

Os três anos de gestão de Steinbruch à frente da Vale, até maio de 2000, foram marcados por desavenças com seus sócios - dois deles, Previ e Bradesco, eram acionistas também da CSN. Começaram menos de seis meses depois de assumirem o comando e eram decorrentes desde a forma personalista de gestão de Steinbruch, presidente executivo e do conselho da Vale, até visões diferentes da estratégia de negócios da companhia.

O primeiro fato dos desentendimentos foi a privatização da siderúrgica venezuelana Sidor, em novembro de 1997. Havia pontos de vista diferentes sobre a participação da mineradora nesse processo. No auge das tensões, Steinbruch foi acusado de querer fundir Vale e CSN para formar um grupo único de mineração e aço. Atualmente, esse conceito de verticalização ganhou defensores, depois que os preços do minério dispararam. Um exemplo é a Arcelor Mittal.

A partir de setembro de 1999, a situação de convivência tornou-se insustentável entre os sócios. Roger Agnelli, à época conselheiro na Vale pelo Bradesco, foi escalado para negociar, com Steinbruch, sua saída da Vale. A proposta envolveu uma troca das ações detidas pela CSN (31% do capital da Valepar) por participações detidas pelo banco e Previ na siderúrgica. Esse processo durou um ano e meio.

"A Vale estava parada, sem estratégia por ter um presidente executivo que acumulava as tensões com os acionistas. E havia visões diferentes e desarmonia no conselho", lembra o ex-embaixador Jório Dauster, que presidiu a empresa a partir de 2000.

Em março de 2001 foi fechado o acordo de descruzamento societário. O BNDES financiou a compra das ações do fundo e do banco na CSN pela Vicunha, dona da CSN.

Esse descruzamento, entretanto, gera tensões entre Vale e CSN até hoje. Na época, a mineradora obteve um acordo que garantia o direito sobre toda a produção excedente da rica mina Casa de Pedra, pertencente à CSN, para evitar uma concorrência futura por parte da siderúrgica. Hoje, além de suprir a usina da CSN, Steinbruch quer o direito sobre a extração e a venda de 60 milhões de toneladas de ferro da mina.

O atrito persiste apesar de o Cade ter dado à Vale a opção de desistir desse direito ao julgar, em 2005, várias compras que a mineradora fez no setor. A Vale não concordou com a decisão e recorreu à Justiça.