Título: Inovação tecnológica abre disputa entre telefonia e TV paga
Autor: Moreira, Talita
Fonte: Valor Econômico, 10/05/2007, Empresas, p. B3

Nos últimos anos, a palavra convergência tornou-se uma espécie de mantra para as empresas de comunicações, símbolo de algo inexorável. Segundo o dicionário Aurélio, o vocábulo traduz o ato de tender ou dirigir-se para um mesmo ponto. No jargão tecnológico, refere-se à confluência entre voz, internet e vídeos. Mas a reação que o substantivo tem despertado entre as concessionárias de telefonia fixa e as operadoras de TV por assinatura, no Brasil, é o oposto de seu significado original.

A incursão das teles no mercado de vídeos e, de outro lado, das prestadoras de TV paga em telefonia e banda larga colocou em campos opostos esses segmentos de empresas - e a beligerância só tem feito crescer desde o início de 2007.

Os dois lados têm argumentos fortes e lançam mão de uma retórica contundente para sustentar suas posições. O cenário é complexo e impõe enorme desafio para os órgãos reguladores. Em linhas gerais, as operadoras de telefonia defendem a abertura do mercado para que possam diversificar seus negócios. Mas as empresas de TV paga acusam as teles de usar o negócio de vídeos como pretexto para dominar todas as redes que chegam à residência do consumidor e, assim, constituídas como monopólios regionais, fechar as portas à competição nos serviços de voz e internet.

A rivalidade, que já era grande, adquiriu proporções maiores desde que a Telefônica firmou uma parceria para distribuir banda larga e TV em conjunto com a TVA, em janeiro - quatro meses após ter feito acordo para comprar parte dessa empresa, num negócio ainda à espera das análises da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

O pano de fundo da disputa são inovações tecnológicas, numa profundidade nunca vista, que aumentaram e diversificaram a capacidade das redes e abriram caminho para uma competição que até pouco tempo atrás não existia.

De um lado, a infra-estrutura de telefonia tornou-se apta a distribuir conteúdos como vídeos, mas as companhias do setor esbarram em obstáculos regulatórios que impedem a oferta do serviço em larga escala - daí o argumento usado por elas para justificar o interesse em adquirir empresas de TV por assinatura. De outro, as redes de TV a cabo e de MMDS (microondas) hoje conseguem proporcionar o acesso à web e a voz em protocolo de internet (voz sobre IP), e as empresas estão começando a fazer dinheiro com isso.

O que está em jogo, para teles e TVs, é o posicionar-se para garantir espaço num mundo convergente, que está apenas engatinhando. E embora o discurso se dê em torno do serviço de TV, as empresas admitem que é o controle do mercado de banda larga que realmente interessa nessa disputa. Afinal, na rede de internet rápida trafega qualquer tipo de conteúdo, inclusive voz e vídeos.

As concessionárias de telecomunicações querem diversificar suas atividades porque enfrentam uma crise inédita em seu negócio principal, a telefonia fixa, bombardeada pela migração do tráfego de ligações para os celulares e pela disseminação da tecnologia de voz sobre IP, com a qual é possível fazer chamadas a custo zero ou muito reduzido.

Em 2006, a receita bruta somada da Telefônica, Oi (antiga Telemar) e Brasil Telecom com telefonia fixa local foi de R$ 32,4 bilhões, 2,5% abaixo do valor obtido no ano anterior.

"A importância de se buscar uma oferta de TV é simples: uma necessidade do cliente. Ele quer ter vídeo, telefone e internet juntos e com desconto", afirma o vice-presidente de estratégia e regulamentação da Telefônica, Maurício Giusti. Os pacotes três em um aos quais o executivo se refere recebem o nome de "triple play" no linguajar do setor.

Mas, para as operadoras de TV paga, o que as teles querem de fato é controlar todos os tipos de rede, eliminar concorrentes e barrar a entrada de competidores em suas áreas de concessão. Se o interesse fosse apenas o de atuar no segmento de vídeos, avaliam, as empresas de telefonia não precisariam comprar prestadoras de TV por assinatura - como têm procurado fazer.

Há dois caminhos que permitem às teles oferecer o "triple play" sem ferir a regulamentação, observa o diretor-executivo da Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA), Alexandre Annenberg. Um deles é usar suas próprias redes para distribuir vídeos sob demanda, com a tecnologia conhecida como IPTV, ainda em fase de testes no Brasil. Outro é firmar parcerias comerciais com empresas de TV, tal como a Oi e a Brasil Telecom fizeram com a Sky, operadora de satélite.

O problema, segundo o diretor da ABTA, surge quando as teles compram empresas de TV por assinatura em suas respectivas áreas - casos da Telefônica com os ativos da TVA no Estado de São Paulo e da Oi com a WayTV, em Belo Horizonte.

"Essas iniciativas não só fecham o mercado, porque concentram todas as redes na mão da operadora, mas também fecham as portas para que outros competidores entrem ", acrescenta o presidente da Sky, Luiz Eduardo Baptista.

Controlada pela News Corp., a Sky detém 95% do mercado de TV paga via satélite no Brasil e passará a enfrentar a concorrência da Telefônica, que no ano passado firmou parceria comercial com uma operadora pouco conhecida, a DTHi, e obteve, na Anatel, sua própria licença de DTH (sigla que indica a tecnologia de satélite), que ainda não está no ar.

Outro argumento apontado pela ABTA é o de que, com seu enorme poder econômico, as concessionárias de telefonia acabariam por inibir a competição em outros serviços que não a distribuição de vídeos. O raciocínio é o de que as operadoras usariam a margem de lucro gerada pela telefonia fixa para entrar com ofertas agressivas no mercado de TV. Em conseqüência, as empresas desse setor - que têm no negócio de TV seu negócio principal - perderiam a capacidade de investir nos serviços de internet e voz e, assim, de continuar competindo com as teles.

As três concessionárias locais faturaram, juntas, R$ 60,1 bilhões no ano passado, enquanto as empresas de TV alcançaram receita bruta de R$ 5,5 bilhões.

"As concessionárias já são quase monopolistas na telefonia fixa. Quando entram na distribuição de outros produtos, têm um poder imbatível", ressalta Annenberg. Os planos, à época da privatização das teles, de promover a competição por meio de empresas espelhos frustraram-se e as empresas que adquiriram as licenças de telefonia fixa nas três áreas em que se dividiu o país têm restringido sua atuação cada qual à sua área na prestação de diversos serviços.

Com sua estratégia de expansão, a Telefônica transformou-se no grande adversário das operadoras de TV. A entrada do grupo no mercado de DTH e a compra de participação na TVA, do grupo Abril, incomodaram os rivais - que vêem na atuação da concessionária uma tentativa de controlar todos os tipos de redes.

"A Telefônica já tem rede de telefonia fixa e de celular [por meio da Vivo e, agora, também por meio de uma participação indireta na TIM]. Com a TVA, terá cabo e MMDS. Além disso, quer disputar o leilão de licenças de WiMax [padrão de banda larga sem fio]", observa o advogado Pedro Dutra, que representa a ABTA.

No mês passado, a associação pediu ao Cade uma liminar que suspendesse os efeitos da parceria comercial firmada entre a Telefônica e a TVA, alegando que a concessionária de telefonia já estaria agindo como controladora de fato da empresa de TV, embora o negócio ainda careça da aprovação das autoridades brasileiras. O órgão de defesa da concorrência negou a medida, mas o conselheiro Ricardo Cueva apontou que, à primeira vista, há risco de concentração de redes e desincentivo aos investimentos na infra-estrutura da própria Telefônica caso a transação societária seja concluída.

Giusti, da Telefônica, diz que a companhia está "absolutamente tranqüila" quanto à legalidade do acordo com a TVA. O executivo também rebate as acusações de que a operadora esteja interessada em adquirir ativos para dominar os meios de acesso. Segundo ele, comprar uma prestadora de TV paga é uma maneira de aprofundar as ofertas de produtos num mercado onde ter escala é fundamental. "Fazer uma parceria comercial ajuda, mas existem limitações técnicas para se ter um serviço totalmente integrado", diz.

Se as TVs acusam as operadoras de telefonia de querer bloquear a concorrência, as concessionárias, por sua vez, alegam que as empresas de televisão paga pretendem navegar sozinhas no "triple play". "As TVs querem ter o monopólio do 'triple play'. O que as empresas de telefonia querem é, em condições assemelhadas, oferecer as mesmas coisas, como vem acontecendo no mundo inteiro", defende José Fernandes Pauletti, presidente da Abrafix, associação das concessionárias locais.

Outro aspecto destacado pelas teles é que elas, como concessionárias de serviço público, são obrigadas a cumprir as metas de universalização impostas pela Anatel - o que significa atuar até mesmo em regiões que não dão retorno financeiro. Enquanto isso, argumentam, as operadoras de televisão por assinatura concentram seu poder de fogo apenas nas áreas mais ricas, ou seja, podem aplicar o capital de maneira mais eficiente e, com isso, vender pacotes mais vantajosos.

-------------------------------------------------------------------------------- Segundo operadoras de TV por assinatura, teles pretendem dominar todas as redes para barrar concorrência --------------------------------------------------------------------------------

"Com as restrições regulatórias, a gente não consegue usar a infra-estrutura para levar TV para lugares onde também não há TV a cabo, porque essas empresas optam por atuar só nas regiões mais ricas", afirma Giusti.

As concessionárias também observam que, por mais de uma década, as operadoras de TV atuaram sozinhas nesse mercado, mas nunca conseguiram popularizar o serviço porque cobram por ele mais do que a maioria dos brasileiros pode pagar. Segundo elas, aí estaria o motivo pelo qual o Brasil é, no mundo todo, um dos países onde a TV paga tem adesão mais baixa (o setor encerrou o ano passado com 4,7 milhões de assinantes, conforme a ABTA). Segundo as teles, a competição seria, portanto, benéfica para o consumidor.

Quando assumiu a presidência da Telefônica, nos primeiros dias de janeiro, Antônio Carlos Valente afirmou que a operadora de telefonia iria entrar no segmento de TV paga e baratear os produtos. Naquele momento, fazia poucos meses que a operadora havia estreado a parceria comercial com a desconhecida DTHi - operação que levou os concorrentes a apostar que se tratava de uma aquisição disfarçada. A Telefônica nega a acusação.

Contudo, embora tenham amargado anos sem conseguir elevar a base de clientes de TV, as operadoras de cabo e MMDS têm crescido significativamente no mercado de banda larga.

Segundo fontes de mais de uma concessionária de telefonia, as companhias de TV paga - especialmente a Net, maior empresa de cabo do país - estão vendendo mais assinaturas de internet rápida, em bairros de classe alta do Rio e de São Paulo, do que as teles.

No município de São Paulo, o mais rico do país, a participação da Telefônica no mercado de banda larga caiu de 88%, em 2002, para 65% em 2006, ano em que terminou com 1,6 milhão de clientes. A fatia da Net saltou de 5% para 30% (727 mil assinantes), na mesma base de comparação. O total da TVA subiu de 4% para 5%. Os dados são da Pay-TV Survey e da Competitive Market Analysis (CMA) e constam do pedido de liminar feito pela ABTA ao Cade.

"A Telefônica está incomodada porque começou a perder mercado no segmento que mais cresce, que é o de banda larga", ressalta Dutra, advogado da ABTA. Em março do ano passado, a Net começou a competir também em telefonia, com o lançamento de um serviço de voz que em 12 meses conquistou 257,4 mil assinantes em toda a área onde ela atua.

A disputa no mercado brasileiro remete ao duelo travado entre espanhóis e mexicanos na arena internacional das telecomunicações.

A Telefônica é controlada pelo grupo espanhol Telefónica. A Net é controlada pelas Organizações Globo, mas tem como acionista também a Embratel, da mexicana Telmex, de Carlos Slim.

Telefónica e Telmex brigam palmo a palmo pela liderança no mercado latino-americano. A competição é tão feroz que alguns de seus lances ultrapassam as fronteiras regionais. No fim do mês passado a Telefónica anunciou a compra da holding controladora da Telecom Italia, em parceria com bancos italianos - derrotando uma proposta que havia sido feita por Slim.

Nos últimos anos, a Telmex tem sido uma pedra no sapato das empresas que já atuavam no país. A companhia chegou em 2003, quando adquiriu os ativos da AT&T Latin America. Depois, comprou também a Embratel e participou do aumento de capital que concluiu a reestruturação financeira da Net, processo após o qual a empresa de TV a cabo recuperou fôlego para competir.

A empresa de telefonia celular de Slim, a América Móvil, já estava no Brasil fazia mais tempo. Entretanto, foi apenas no início desta década que começou a investir mais pesadamente, com a aquisição de ativos que hoje formam a Claro, terceira maior do setor no país.

"A ABTA argumenta que as teles querem dominar todos os tipos de infra-estrutura. Mas a rede que a Telmex e a América Móvil desenvolveram no Brasil é bastante abrangente", pondera Giusti.

Na avaliação da presidente da TVA, Leila Lória, o investimento dos mexicanos na Net foi benéfico para o setor de TV por assinatura. "É positiva a entrada de empresas de telecomunicações no mercado de TV. As operadoras de vídeo hoje precisam oferecer todos os serviços, mas não têm porte. A alternativa que resta é se unir a alguém, e as teles são a única opção. Não existem muitas Telmex querendo entrar no Brasil."

Segundo Leila, a resistência da ABTA é direcionada apenas às concessionárias locais, e não às teles em geral. A Embratel também é concessionária, só que de longa distância. Para a executiva, a associação defende os interesses da Net. Conforme o estatuto da ABTA, o número de votos nas assembléias é proporcional à quantidade de clientes das operadoras - o que dá à Net a maioria.

Dutra, advogado da ABTA, ressalta que Leila mudou de opinião depois que foi anunciado o acordo com a Telefônica. Segundo ele, a comparação entre as teles locais e a Embratel não é justa porque são empresas com perfis diferentes. a Embratel não tem a chamada "última milha", o trecho final de uma rede de telefonia que chega até a residência do consumidor.

As tentativas da Embratel de suprir essa lacuna foram, no fim de 2003, a compra da Vésper (que detém uma infra-estrutura pouco significativa) e o investimento na Net, com quem tem hoje um serviço de telefonia local.

As operadoras de telecomunicações argumentam que a situação tornou-se anacrônica. Elas queixam-se de haver limites à sua atuação no mercado de TV paga, ao mesmo tempo em que um dos maiores grupos de telecomunicações do mundo, a Telmex, é acionista, ainda que em posição minoritária, da principal operadora de TV do Brasil. Por isso, defendem uma revisão das leis e regras vigentes que resulte numa liberalização do mercado para todos.

Para o presidente da Oi, Luiz Eduardo Falco, não faz sentido as operadoras de TV terem liberdade para atuar em banda larga e as teles sofrerem restrições para entrar no negócio de vídeos. "É proteção de mercado. Entendo quando o órgão regulador faz isso no sentido de proteger novos competidores. Mas tenho menos facilidade de entender quando só beneficia os grandes", disse ele, numa entrevista recente ao Valor. A Net, por seu lado, tem objetado que sua rede de cabo é pequena se comparada à rede das empresas de telefonia fixa.

Segundo Pauletti, da Abrafix, a demora dos órgãos reguladores em rever a legislação causa prejuízo às teles. "O modelo atual privilegia só um [grupo, a Telmex]. É lícito o direito deles, mas não podem ser só eles [a atuar no 'triple play']." Procuradas pelo Valor, a Embratel e a Net preferiram não dar entrevistas neste momento, assim como a Brasil Telecom.

Com o objetivo de compreender melhor o assunto e se preparar para os julgamentos que terá daqui para frente, o Cade abriu no mês passado uma série de audiências públicas com executivos das companhias e especialistas no tema para debater a convergência. O órgão antitruste terá, nos próximos meses, pelo menos dois negócios importantes a analisar: a compra da Oi pela WayTV e da TVA pela Telefônica.

A Anatel, por enquanto, tem agido pontualmente. Negou a anuência à Oi para adquirir a WayTV, alegando que uma concessionária de telefonia local não poderia comprar uma empresa em sua área de concessão. Embora alguns conselheiros tenham afirmado que o objetivo é analisar a convergência com uma visão mais global sobre os impactos do negócio e os grupos envolvidos, nesse único caso o órgão ateve-se estritamente às questões regulatórias.

O ministro das Comunicações, Hélio Costa, afirmou em fevereiro que seria criado um grupo de trabalho para discutir a convergência em seus mais diversos aspectos, mas isso ainda não aconteceu.