Título: A herança envenenada de Tony Blair
Autor: Davidson, Ian
Fonte: Valor Econômico, 10/05/2007, Opinião, p. A15

Tony Blair pode reivindicar enfaticamente ser um dos mais bem-sucedidos políticos britânicos em qualquer geração recente, pelo menos nas esferas da política econômica doméstica e social. Mas a história o lembrará fundamentalmente pelo erro estratégico em sua decisão de ir à Guerra no Iraque.

Durante seus dez anos no poder, Blair e Gordon Brown, seu ministro das Finanças, proporcionaram ao Reino Unido um dos mais longos períodos de estabilidade econômica, crescimento relativamente alto e baixo desemprego que o país jamais conhecera. Nesse aspecto, o mandato de Blair assinalou uma ruptura fundamental com a tradição de "tributar-e-gastar" do Partido Trabalhista. Blair também estabeleceu uma nova tradição de estabilidade em política econômica, continuando e reforçando o compromisso do governo conservador anterior para com disciplina fiscal e inflação baixa. A política econômica estável e o crescimento rápido, por sua vez, permitiram que o governo Blair injetasse dinheiro extra em educação e no Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Entretanto, o legado doméstico de Blair é um clima de desilusão e desconfiança, especialmente em relação a ele próprio. Uma das razões é que uma parcela significativa do seu partido (que ele rebatizou como "New Labor") nunca se reconciliou com a primazia que o primeiro-ministro atribuiu aos princípios do livre mercado, em detrimento de seus velhos valores socialistas ou social-democratas. Outra razão é que Blair pareceu dar sistematicamente muito menos atenção ao Parlamento do que aos tablóides de direita: o "marketing" político e a manipulação da mídia ao qual seu gabinete dedicou tanto esforço fez, de início, maravilhas, mas logo gerou profundo ceticismo e desconfiança.

Mas a principal razão da desilusão da opinião pública britânica com Blair está centrada em seu papel na guerra no Iraque, que foi desfechada com o alegado objetivo de prevenir o emprego, pelo Iraque, de armas de destruição em massa (ADM). Como todos sabemos agora, tais armas nunca foram encontradas e, o mais grave, evidências vieram à luz revelando que Blair tinha ciência de que o governo Bush estava comprometido com uma mudança de regime, independentemente da falsidade da denúncia das armas. O infame memorando de Downing Street datado de 23 de julho de 2002, oito meses antes da deflagração da guerra, declarava explicitamente que "as informações de serviços de inteligência e os fatos estão sendo moldados em torno da política".

Em suma, quando Blair levou o Reino Unido à guerra, ele enganou deliberadamente o Parlamento e o eleitorado sobre a ostensiva justificativa para a ação. Quando não foram encontradas as armas, Blair mudou seu discurso, passando então a dizer que a derrubada de Saddam Hussein era a "coisa certa a fazer".

Infelizmente, o governo Bush não previu que a derrubada de Saddam precipitaria uma insurgência multilateral e guerra civil. Esses riscos eram previsíveis e o mundo agora sabe que a condução da guerra se revelou um enorme fracasso da estratégia americana - e poderá, ainda, gerar conseqüências ainda mais catastróficas.

-------------------------------------------------------------------------------- É duvidoso que o primeiro-ministro dissuadisse Bush de ir à guerra, mas, apesar disso, ao apoiar a ocupação seu legado permanecerá denegrido --------------------------------------------------------------------------------

Por que terá Blair apoiado a guerra? Parte da resposta remonta à primeira grande aventura de Blair em política externa: a intervenção da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) em Kosovo em 1999.

Em 1998-1999, a Sérvia tinha embarcado em repressão violenta contra a maioria de etnia albanesa em Kosovo, expulsando cerca de 400 mil habitantes de seus lares. Os esforços diplomáticos envidados pelo mundo exterior revelaram-se ineficazes e, portanto, em março de 1999, a Otan iniciou uma campanha de 78 dias de bombardeios contra os sérvios. Blair pôs-se na vanguarda, entre os líderes ocidentais, em defesa de ações da Otan; e justificando essa inovação em intervenção externa, ele proclamou "uma nova doutrina de comunidade internacional" que qualificava a ação de "guerra justa", porque baseada em valores ocidentais superiores.

Um dos defeitos da personalidade de Blair é sua certeza moral, uma confiança excessiva - talvez uma extrapolação de sua fé cristã - em que ele sabe o que é certo, e tem, portanto, o direito de agir segundo suas convicções. No caso do Iraque, Blair nunca admitiu que a guerra foi um erro em sua concepção ou, na prática, desastrosa: ainda hoje, para ele, a guerra foi "a coisa certa a fazer".

O primeiro-ministro deixará o cargo antes de um desdobramento das plenas conseqüências da Guerra do Iraque. Não há sinais de um fim para a violência sectária e são escassas as perspectivas de que o Iraque possa tornar-se uma democracia pacífica e unitária. Além disso, as convulsões no Iraque poderão produzir repercussões incalculáveis em todo o Oriente Médio.

Uma das conseqüências, de uma perspectiva britânica, é ser agora praticamente impossível imaginar que algum futuro primeiro-ministro possa engajar-se em outra grande aventura militar fundamentalmente devido à lealdade a um presidente americano. De fato, é possível que Blair, devido a sua cumplicidade na Guerra do Iraque, tenha infligido grande dano à própria idéia de "relação especial" entre o Reino Unido e os EUA. Essa relação foi sempre mais especial para os britânicos do que para os americanos, que mal reconhecem sua existência. Mas se a "relação especial" está agora desacreditada nas mentes do povo britânico, o resultado poderá ser um novo elemento de independência no pensamento estratégico britânico.

Outra conseqüência é que o status moral britânico ficou comprometido, juntamente com o americano. Mas o prejuízo para a posição moral americana é mais grave para a saúde do mundo. É duvidoso que Tony Blair pudesse ter dissuadido George Bush de ir à guerra no Iraque. Apesar disso, ao apoiar entusiasticamente a guerra de Bush, seu legado permanecerá para sempre profundamente denegrido.

Ian Davidson é assessor e articulista do European Policy Centre, em Bruxelas. Ex-colunista do Financial Times, seu livro mais recente é "Voltaire in Exile".